O racismo na violência de Estado e a cultura ballroom no Brasil
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🔸 “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil.” Foi este o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024, aplicado ontem em todo o país. Mais de 4 milhões de estudantes se inscreveram na prova, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O Mundo Negro lembra que o tema da redação aparece num contexto de ampliação do debate sobre questões raciais no Brasil. Soma-se a isso o fato de 2024 ser o primeiro ano em que o Dia da Consciência Negra será feriado nacional, em 20 de novembro. O Enem segue no próximo domingo, com as provas de Matemática e Ciências da Natureza.
🔸 De janeiro a setembro deste ano, as polícias de São Paulo mataram duas pessoas por dia. Ao todo, nos nove meses, foram mortas 580 pessoas, mais do que o registrado no ano de 2023 inteiro. A Ponte ressalta que este é o décimo aumento consecutivo do indicador durante a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite. Diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), Gabriel Feltran afirma que “esse grupo com a ideologia de matar bandido sempre esteve nas polícias de São Paulo, mas estava um pouco controlado nos últimos anos”. Para ele, o governador e o secretário apostam num modelo que fracassou entre os anos 1980 e 1990 – e que culminou no Massacre do Carandiru, em 1992, e na formação do Primeiro Comando da Capital (PCC).
🔸 A propósito: “A violência policial é praticada para a perpetuação do racismo”, afirma Paulo César Ramos. Ele mergulhou em acervos do movimento negro brasileiro para traçar uma linha do tempo de protestos que denunciaram a violência de Estado nos últimos 50 anos. O resultado é o livro “Gramática Negra contra a Violência de Estado”, recém-lançado pelo autor, também pesquisador e coordenador do núcleo de pesquisa Afro-Cebrap. Em entrevista ao Nexo, ele destaca que a violência policial sempre foi uma preocupação das organizações negras no Brasil do século 20 e apresenta um padrão adotado nas manifestações ao longo do tempo. “Primeiro, o protesto é baseado em uma violação. Segundo, ele é reproduzido e publicizado de acordo com um entendimento que é prévio ao evento. Em terceiro lugar, ele também passa por uma dissolução. Ele não encontra uma saída estrutural. Isso é uma característica da luta das questões voltadas à segurança pública. Ninguém conseguiu produzir uma agenda progressista para essa área que ganhasse corações e mentes, que ganhasse lastro institucional.”
🔸 Milionários pagam menos impostos que assalariados que recebem R$ 4,5 mil por mês. É o que mostra um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). A Agência Nossa explica que há um teto na tributação de 14,2% dos rendimentos para quem recebem média de R$ 516 mil anuais. Quem ganha mais que isso, paga menos imposto – e, no topo da pirâmide, a taxa recua para apenas 7,4%, menos que o tributo pago por um trabalhador que ganha R$ 4,5 mil mensais. “Os dados mostram que a progressividade deixa de existir no topo da pirâmide social brasileira e, além disso, a alíquota média máxima é muito baixa quando comparada com aquela praticada pela maioria das economias desenvolvidas e mesmo em relação aos principais países latino-americanos”, diz Sérgio Wulff Gobetti, autor do estudo.
📮 Outras histórias
Abandonado por dez anos, o Morro do Cristo é uma pequena localidade no interior do Paraná. Fica no distrito de São Luiz do Purunã, na cidade de Balsa Nova, a 45 quilômetros de Curitiba, e leva esse nome porque tem uma estátua que imita o Cristo Redentor – rodeado por obras inacabadas e nenhum morador. O cenário, porém, mudou bastante desde julho passado. Foi quando dez famílias Kaingang se instalaram por lá, com 11 crianças e quatro pessoas idosas. O Plural conta que, até agora, as relações dos novos moradores com a prefeitura local têm sido cordiais, mas as lideranças indígenas temem a mudança da administração municipal – a atual gestão, de Marco Antonio Zanetti (PSD), deu lugar para Clevinho Poletto (PL), que venceu as eleições com 53% dos votos.
📌 Investigação
Vítima de tráfico humano, Luckas Viana dos Santos, brasileiro de 31 anos, é mantido em condições análogas à escravidão em uma fábrica de golpes virtuais na fronteira entre Mianmar e Tailândia. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil monitora o caso. Luckas foi atraído por uma proposta de emprego de atendimento ao cliente, mas, ao chegar à Tailândia, percebeu que estava sendo traficado. “No meio do nada, entramos numa selva, pegamos um barco e tenho que esperar mais um carro”, escreveu numa das mensagens enviadas para um amigo às quais o Intercept Brasil teve acesso. A região da tríplice fronteira entre Tailândia, Mianmar e Laos é uma espécie de epicentro das chamadas “fábricas de golpes”. Em agosto de 2023, a Organização das Nações Unidas (ONU) estimou que cerca de 120 mil pessoas em Mianmar são mantidas em condições análogas à escravidão, depois de traficadas.
🍂 Meio ambiente
Técnicos do Ibama contestam a postura da Petrobrás no licenciamento da exploração da Foz do Amazonas. Vinte e seis analistas ambientais do órgão recomendaram o indeferimento da licença para perfuração na área. Eles apontam inconsistências no Plano de Proteção à Fauna (PPAF) e desrespeito aos protocolos de consulta aos povos indígenas. O Eco revela que o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, decidiu pedir mais informações à Petrobras, ignorando a sugestão de arquivamento do processo. O parecer técnico do órgão destaca que a Petrobras demonstrou mais preocupação com o impacto sobre aves do que sobre comunidades indígenas. “O Ibama não dá licenças políticas, dá licenças técnicas. Ele não facilita, nem dificulta. Alguém vai ficar teimando com a Anvisa quando ela diz que um remédio é tóxico?”, disse Marina Silva, ministra do Meio Ambiente.
📙 Cultura
No ritmo da resistência, a cultura ballroom se espalhou pelo Brasil e chegou até as comunidades indígenas. Entre 1985 e 1989, o Harlem, bairro de Nova York, nos Estados Unidos, tornou-se palco de concursos de “vogue”, em que participantes gays desfilavam como personagens em uma passarela improvisada. Na revista piauí, Erika Palomino conta como essa cultura evoluiu ao longo dos anos por aqui e conquista cada vez mais territórios. A cena nacional inclui categorias como “Samba no Pé” e “Joga a Raba”, com raízes em tradições afro-brasileiras. “A ballroom tem sido muito importante para mostrar pessoas trans num lugar de arte, de saber artístico, produção de conhecimento, produção artística, de não ver mais pessoas trans e travestis num lugar marginalizado. Na cultura ballroom, a travesti é a pessoa que mais se endeusa, porque ela foi uma cultura criada por travestis”, afirma a Up and Coming Legend, que participa de ballrooms em Brasília.
🎧 Podcast
“Enquanto havia um movimento feminista, de mulheres brancas, de classe média, classe média alta, lutando por espaço no mercado de trabalho, já havia mulheres negras que estavam há muito tempo nesse mercado de trabalho”, afirma a jornalista Maju Coutinho, que tem uma família matriarcal como referência. No “Estranho Familiar”, produção da Trovão Mídia, ela conversa com Vera Iaconelli sobre as figuras maternas que permeiam sua base parental. Conta que sua avó materna foi empregada doméstica, semi-analfabeta e dona de grande sabedoria: “Se a minha avó tivesse estudado, eu tenho certeza de que ela seria ministra do STF”. A avó dizia que o estudo era a única saída para a mobilidade social – e realmente foi. “[O estudo] Foi o que fez minha mãe se tornar educadora, e a gente estudar. Depois, eu e meu irmão, de certa forma, dar esse salto.”
🧑🏽🏫 Educação
Ao analisar os resultados do 9º ano em Língua Portuguesa e Matemática, o boletim do Observatório da Branquitude, intitulado “Desempenho Escolar, Raça e Gênero: o que Contam os Dados do Saeb 2023”, cruzou as variáveis de raça/cor e gênero dos microdados disponibilizados publicamente pelo Ministério da Educação e pelo Inep. A Marco Zero destaca que meninas brancas apresentam o melhor desempenho em Português, seguidas por meninas negras. Em Matemática, meninos brancos lideram em quase todo o país, com meninos negros em segundo lugar, exceto em Alagoas, onde meninos negros obtiveram a maior média. Pesquisadora do Observatório da Branquitude, Nayara Melo enfatiza a importância da interseccionalidade na análise dos dados e afirma: “Com esse estudo, não estamos querendo avaliar a capacidade do estudante, mas observar que existem condicionantes externos e internos que podem atravessar a trajetória de aprendizagem dos estudantes”.
Correção: Na edição de quinta-feira (dia 31/10), nota sobre reportagem do Portal Boca no Trombone informou erroneamente que era do Ceará a aluna vítima de injúria racial numa partida de futsal. Na verdade, a estudante é natural de Castro (PR).
Excelente curadoria!