A tragédia no litoral norte de SP e o Carnaval num quilombo do sul
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🔸 Uma sequência de temporais desde o último sábado causou deslizamentos de terra e deixou ao menos 48 mortos no litoral norte de São Paulo, segundo boletim da Defesa Civil divulgado nesta manhã. Cerca de 1.730 pessoas foram desalojadas e 766, desabrigadas. A tragédia foi maior na cidade de São Sebastião, mas a situação de calamidade atinge também Ubatuba, Ilhabela, Caraguatatuba, além de Bertioga. O Metrópoles informa que uma força-tarefa com 600 homens e mulheres fazem ações de resgate na região. Cerca de 50 pessoas ainda estão desaparecidas. Já os recursos para a prevenção de desastres em 2023 são os menores dos últimos 14 anos: cerca de R$ 1,2 bilhão, segundo levantamento feito pela Associação Contas Abertas. A gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) havia previsto no Orçamento pouco mais de R$ 671 milhões, e o valor foi aumentado com a PEC da Transição. Em gráfico, a reportagem mostra como os recursos vêm caindo ao longo dos anos.
🔸 A frequência dos desastres ambientais, porém, só faz crescer. Apenas no último ano, ao menos quatro tragédias ganharam atenção nacional: enchentes no sul da Bahia e no norte de Minas Gerais, deslizamentos na serra fluminense, a pior enchente do século em Pernambuco e o alagamento de vários municípios em Santa Catarina. O aquecimento global é a explicação científica para o aumento da frequência. “A temperatura global já subiu quase 1,2 °C desde o século 19, e 80% deste crescimento se deu desde a década de 1960. Com isso, no Brasil, já começamos a vivenciar o aumento em 50% de eventos extremos de todos os tipos em comparação com meados do século passado”, afirma Carlos Nobre, cientista brasileiro que é referência mundial em mudanças climáticas. Em entrevista ao Congresso em Foco, ele explica que o maior desafio agora é cumprir o Acordo de Paris, a fim de não deixar a temperatura subir acima de 1,5 °C. A sociedade, a economia e a agricultura precisam se adaptar para o crescimento dos desastres. O mais urgente, diz Nobre, é olhar para as 10 milhões de pessoas que vivem em áreas de risco no país.
🔸 “Pode ter fé! Que o preto pode ser o que quiser.” O grito marcou a vitória da Mocidade Alegre no Carnaval de São Paulo. A escola, que desfilou a história do primeiro samurai negro, esperava pelo título havia nove anos, como conta o Portal Terra. Já no Rio de Janeiro, a apuração das campeãs ocorre hoje. As escolas cariocas se voltaram sobretudo para temas da cultura popular brasileira, depois dos últimos carnavais com enredos críticos à política, sob os governos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). O Projeto Colabora defende que o tom politizado tem lugar cativo na Sapucaí e cita o exemplo da Beija-Flor de Nilópolis, que desfilou uma nova versão da Independência do Brasil com o enredo “Brava Gente! O Grito dos Excluídos no Bicentenário da Independência”. Pelo sambódromo, a escola teceu críticas à desigualdade, à violência contra a mulher, aos ataques aos povos indígenas, ao racismo e à homofobia.
🔸 São recorrentes nos desfiles as homenagem a orixás e divindades do panteão africano. No Carnaval, cultura e candomblé se retroalimentam, como explica a Alma Preta. “No Rio de Janeiro, as escolas de samba mais tradicionais, como Mangueira, Portela, Império Serrano, Salgueiro, entre outras, nasceram sob a proteção de pais e mães de santo, dentro de terreiros de macumbas e de candomblés, e têm orixás assentados em sua fundação, além de membros da bateria também tocarem em terreiros”, diz a jornalista e pesquisadora de cultura afro-brasileira Claudia Alexandre. Ela defende que o Carnaval das escolas “sempre foi um amplificador da cultura negra e dos anseios do negro em ganhar o espaço público, de se manter pertencente à dinâmica da sociedade, apesar de ser visto apenas como uma festa que, hoje, é gerida pela indústria”.
📮 Outras histórias
Num quilombo em Porto Alegre, meninas e meninos de 4 a 15 anos puxam o Carnaval. Sua “avenida” é uma rua estreita no bairro Menino de Deus, onde fica o Areal da Baronesa, um dos 11 quilombos urbanos da capital gaúcha. Lá, há 20 anos, o projeto Areal do Futuro oferece aulas de dança e instrumentos aos pequenos quilombolas. Era para ser apenas um trabalho de ensino de música de sopro e percussão, mas, aos poucos, chegaram mais instrumentos de bateria, fizeram uma bandeira, um estandarte e, enfim, virou samba. O Nonada resgata a origem do Carnaval no quilombo.
A história da rua LGBTQIA+ do Carnaval de Olinda, em Pernambuco. A Treze de Maio, conhecida apenas como Treze, teve uma sucursal carnavalesca da boate Metrópole, em 2002. Durou apenas dois anos, mas, como conta a Diadorim, foi tempo suficiente para que gays, lésbicas, transexuais e outros heterodivergentes adotassem a via como ponto de encontro. A vizinhança reagiu e pediu à prefeitura algum controle. “Lembro que chegaram a instalar um praticável com dois policiais na porta da boate, para impedir possíveis excessos”, lembra a empresária Maria do Céu Kelner. Ela completa, rindo: “Mas os policiais eram tão gatos que só fizeram atrair mais gente”.
📌 Investigação
Os registros de estupro aumentam em 50% nos dias de Carnaval. A Gênero e Número apurou os dados da violência sexual nos dois últimos anos da festa antes da pandemia. Em 2019, foram 36% casos a mais nesses dias em comparação ao restante do ano. Já em 2020, foram 50% mais notificações de ocorrências de estupro de mulheres por dia do que a média diária do ano. As informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, indicam ainda que 52% dos crimes de estupro que ocorreram durante o Carnaval, em 2020, foram cometidos por indivíduos alcoolizados. No restante do ano, essa proporção foi de 38%. Presidente da ONG Me Too Brasil, a advogada Marina Ganzarolli lembra que o álcool é um fator de risco, mas nunca uma justificativa: “As mulheres quando ficam bêbadas não saem por aí estuprando os homens. Então, segue sendo uma questão de gênero, de desigualdade de poder. O que a bebida faz? Ela baixa os limites. O machismo, a ideia de autoridade, de cultura do estupro, aflora, mas já estava lá antes”.
🍂 Meio ambiente
Há uma população selvagem de pau-brasil no Rio de Janeiro. Em perigo de extinção pela excessiva exploração desde a colonização portuguesa, exemplares da espécie foram encontrados na Trilha Transcarioca, dentro do Parque Estadual da Pedra Branca. Diego Monsores, voluntário de um projeto de ciência cidadã, avistou as árvores e acionou a botânica Patrícia Rosa, doutoranda da Escola Nacional de Botânica Tropical do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ela, por sua vez, faz um levantamento das populações selvagens (não plantadas pelo homem) que restaram no Rio de Janeiro. O Eco detalha a descoberta que, segundo Rosa, é “um momento de validação de ações ligadas à tríade: unidades de conservação e voluntariado, trilhas e turismo ecológico, e a ciência de conservação de plantas”.
Como zerar o desmatamento diante de uma alta demanda por carne? Projeções do Ministério da Agricultura indicam aumento de 17% na produção de carne nos próximos dez anos, o que pode significar a destruição de mais de um milhão de hectares por ano até 2030. Segundo o InfoAmazonia, as áreas dedicadas à pastagem ocupavam cerca de 90% do desmatamento na Amazônia, de acordo com os dados da plataforma do MapBiomas de 2021. A reportagem destaca que existe uma saída para criar gado sem avançar sobre a floresta: a restauração das áreas já degradadas para o pasto e investimento em práticas de maior produtividade.
📙 Cultura
“O Carnaval em si é uma adrenalina gostosa, eu gosto dessa loucura. Já o samba é um alimento, é minha válvula de escape.” A sambista Raquel Tobias começou sua carreira no projeto “Samba de Todos os Tempos”, do qual hoje é presidente. Ela também integra a Ala de Compositores do Samba da Vela, roda de samba tradicional do bairro de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo. Neste ano, seu tempo foi dividido entre os desfiles da escola Estrela do Terceiro Milênio, no Grajaú, também zona sul da capital paulista, e no Bloco Pagu, no centro da cidade. Ao Nós, Mulheres da Periferia, a cantora e compositora revela que o início da trajetória no samba foi por meio de um momento de dor: “Quando tô feliz, eu canto; quando tô triste, eu canto; quando tô indignada, componho”.
“Os carnavais de avenida podem ter um potencial pedagógico muito grande porque os enredos, o cortejo dramático, a dramaturgia de um desfile de escola de samba podem colocar uma série de questões vinculadas à história do Brasil, à literatura brasileira, a cultura brasileira, a personagens que constroem o Brasil, tudo isso pode passar numa avenida.” Historiador e escritor, Luiz Antonio Simas afirma ainda que o Carnaval não é alienação, mas, sim, “uma festa que escancara alguns dos dilemas mais terríveis da formação brasileira”. Em entrevista ao Porvir, o autor, que é homenageado no enredo da escola de samba carioca Acadêmicos da Abolição, discorre sobre o sentido da folia e sua função educativa, ao apresentar um Brasil múltiplo, “feito do cruzamento de culturas das mais diversas”.
🎧 Podcast
Moradora do Jardim Pantanal, na zona oeste de São Paulo, a ativista socioambiental Jahzara Ona, 18 anos, entendeu no próprio dia a dia o que é o racismo ambiental e a falta de justiça climática. O podcast “Tamo em Crise”, produção da Agência Mural, ouve a jovem, que participou da COP27, no Egito. O episódio também recebe Jeferson Ribeiro, de 23 anos, morador do Jardim do Carmo, em Itapecerica da Serra, na região metropolitana da capital paulista. Embora ele não se considere ativista, sua percepção dos problemas é parecida com a de Jahzara. Ao longo da conversa, ambos evidenciam que moradia é uma pauta ambiental: a falta de acesso leva famílias a áreas de riscos, o que provoca tragédias por chuvas e deslizamentos de terra.
✊🏽 Direitos humanos
Era 1969 quando o padre irlandês Jaime Crowe, então com 24 anos, chegou ao Brasil. Deveria “combater o comunismo”, segundo a missão que lhe foi dada pela Sociedade Missionária São Patrício. Logo aprendeu que os problemas do Brasil eram outros: “Que comunismo? Aqui tem é gente passando fome”, costumava contar, de acordo com relato da escritora Maria Isabel Lopes Correa. A Ponte narra a trajetória do padre, vinculado à Diocese de Campo Limpo, na capital paulista. Ele morou na cidade de Embu, na Grande São Paulo, onde realizou os Círculos Bíblicos e as mobilizações que deram origem às primeiras Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), entidades da Igreja Católica que aliam reflexão bíblica à ação social, com forte participação popular. Referência na luta pelos direitos humanos no Brasil, ele morreu na segunda-feira, aos 77 anos.