O rastro de terror do massacre no RJ e a crise hídrica no Amazonas
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🔸 Ao longo da madrugada de ontem, moradores dos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, localizaram ao menos 60 corpos na área de mata que conecta as comunidades. As vítimas do massacre das forças de segurança do Estado nas duas favelas se somam às outras 64 mortes contabilizadas pelo governo no dia anterior. Já são ao menos 124 mortos. A Ponte lembra que o número supera o da maior chacina do país, o Massacre do Carandiru, quando ao menos 111 pessoas foram mortas pela Polícia Militar de São Paulo, há 33 anos. Para Fransérgio Goulart, coordenador-executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, a ação batizada pela polícia de Operação Contenção, “extrapolou todos os acordos de direitos humanos”: “Nenhuma polícia do mundo fez esse tipo de execução, se não há uma guerra declarada entre oponentes. É um genocídio, uma barbárie”. Segundo ele, o abandono dos corpos na mata foi uma estratégia deliberada. “O Estado executou e deixou os corpos lá para que as famílias metessem a mão, e, com isso, dificultar qualquer tipo de investigação ou perícia. O corpo não está mais na cena, então a cadeia de custódia das provas foi quebrada”, explica. A reportagem ressalta que, no Rio de Janeiro, o departamento responsável por periciar os corpos e as cenas de crimes está submetido à Polícia Civil, uma das responsáveis pela operação. É por isso que 28 entidades civis assinaram uma carta cobrando uma investigação independente, pedido também feito pela Human Rights Watch e o Alto Comissariado da ONU.
🔸 As vítimas encontradas ontem foram enfileiradas na Praça São Lucas, na Penha, onde moradores tentavam identificar familiares e consolar uns aos outros. Os mortos, alguns deles decapitados, eram trazidos de caminhonete pelas pessoas da própria comunidade. Da praça, a Defesa Civil transferiu os corpos para o Instituto Médico Legal, no centro da capital, com acesso restrito a policiais e integrantes do Ministério Público do Rio de Janeiro. No Instagram, o Voz das Comunidades traz a cobertura completa de toda a mobilização na Penha e no Alemão, desde a busca por corpos até os protestos organizados por moradores das duas favelas em direção ao Palácio Guanabara, sede do governo do estado.
🔸 “Mais uma vez, a gente vê a favela sangrando”, afirma Raull Santiago, líder comunitário, diretor do Instituto Papo Reto e morador do Complexo do Alemão. Em entrevista à Alma Preta, ele detalha o rastro de terror deixado pela chacina e conta que, durante os tiroteios, seu instituto recebeu dezenas de pedidos de ajuda – entre eles, o de uma mãe cujo filho sofreu um ataque de epilepsia em decorrência do pânico instalado na favela. “A gente tem movimento das mães de crianças PCDs e autistas pedindo socorro diante do que isso desperta nas crianças. Fora a totalidade das crianças que ficaram sem aula, das pessoas que não foram para os seus trabalhos, da quantidade de coisas perdidas na rotina comum de quem é pobre e luta para conseguir o básico e ainda tem a vida atravessada dessa forma.”
🔸 “Tirando a vida dos policiais, a operação foi um sucesso”, disse Claudio Castro (PL), governador do Rio, em entrevista coletiva à imprensa ontem. “Quero agradecer às polícias, e me solidarizar com as famílias dos quatro ‘guerreiros’ que deram a vida para libertar a população. De ‘vítima’, só tivemos os policiais”, completou. Em sua gestão, ocorreram quatro das cinco operações policiais mais letais do estado. O Fogo Cruzado destaca que 890 pessoas foram mortas em chacinas policiais durante o governo de Castro. Também ontem, ele articulou com outros governadores de direita a criação de uma espécie de “gabinete paralelo” de segurança pública, informa a CartaCapital. Além de Castro, Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União Brasil-GO), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Jorginho Mello (PL-SC) se reuniram por videoconferência ontem. Eles defendem mais autonomia para os estados e uma política mais repressiva contra o crime organizado.
🔸 O procurador-geral Paulo Gonet pediu que o governador do Rio comprove se a operação mais letal da história do estado observou as diretrizes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O Jota lista os esclarecimentos solicitados por Gonet. Ele, por sua vez, atendeu a um pedido do relator da ADPF das Favelas, ministro Alexandre de Moraes, instado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos. No parecer, a PGR cobra informações sobre preservação das cenas de crime e vestígios, atuação da polícia técnico-científica com perícia no local e remoção de corpos, uso de câmeras corporais e nas viaturas, respeito às regras de busca domiciliar, presença de ambulância, entre outras.
🔸 Um dia depois do massacre, um fluxo de desinformação tomou as redes com milhões de visualizações. O Aos Fatos mostra que vídeos gerados por inteligência artificial viralizaram mostrando supostas cenas do conflito e reações dos criminosos. Um deles, por exemplo, exibe um ônibus em chamas na rua Marquês de Abrantes, no Flamengo, bairro da zona sul do Rio que não teve nenhuma via impactada pela ação policial. O vídeo, aliás, traz o selo do Gemini, assistente de IA do Google. Outro conteúdo mostra um vagão incendiado em Japeri – o material é antigo e foi reciclado. Em tempo: a Lupa explica o que fazer para não disseminar desinformação em situações de crise. A orientação central é frear o impulso e só compartilhar após checar.
📮 Outras histórias
Na Rocinha, com o fim do programa Gari Comunitário, 36 trabalhadores que faziam esse trabalho foram demitidos. O projeto foi encerrado em junho passado, por determinação do Ministério Público do Trabalho. Desde então, a comunidade na zona sul do Rio de Janeiro enfrenta não só a piora na limpeza, mas também sente a falta de figuras que se tornaram parte da identidade local, conta o Fala Roça. Alexandre Mendes, 54 anos, conhecido como Teco-Teco, foi gari comunitário por 29 anos. “Pela nossa comunidade, eu faço tudo!”, diz ele, que deixou o emprego numa escola, em 1996, para aderir ao programa, mesmo sem a garantia de que teria continuidade. Já Sérgio, 56 anos, dedicou 26 deles ao serviço e afirma: “Os garis da Comlurb não entram na vala como a gente. Eles só tiram o lixo da frente”.
📌 Investigação
Na Bacia Amazônica, a maior do mundo, milhões de pessoas vivem sem acesso à água de qualidade e sem saneamento básico. Regiões como Coari, Manicoré, Parintins e Tabatinga possuem valores inferiores a 90% no índice de cobertura urbana de água. Já a maioria da população rural do Amazonas depende das águas de rios, igarapés, lagos ou açudes em um cenário em que a emergência climática impõe secas cada vez mais severas. Em parceria com O Eco, o Vocativo destrincha as décadas de crise hídrica no estado e abandono do poder público para garantir água em quantidade e qualidade à população, enquanto sistemas de abastecimentos caem nas mãos de concessionárias que cobram preços abusivos. “Houve uma espécie de desinvestimento do Estado para que, de fato, chegasse a um nível de insustentabilidade, até mesmo social. Aí vieram muitas reclamações. Então apareceram com a grande solução: vamos privatizar”, afirma o Padre Sandoval Rocha, coordenador do Fórum das Águas do Amazonas. Esta reportagem foi produzida por meio da Bolsa de Reportagem do edital Sala Colaborativa, promovido pela Ajor (Associação de Jornalismo Digital), em parceria com a InfoAmazonia e com apoio do Instituto Serrapilheira.
🍂 Meio ambiente
Em imagens: a Reserva Biológica do Abufari no rio Purus, no Amazonas, é o maior santuário de quelônios de água doce do planeta e um dos últimos grandes berçários de vida na Amazônia. Ali ocorre a desova das tartarugas-da-amazônia, cujos filhotes vão lutar para superar os predadores, a ação humana e a correnteza. A Amazônia Latitude narra o processo de renascimento da espécie e como poucos agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) se desdobram para proteger os ninhos e fiscalizar as ameaças de infrações, como caça de tartarugas e coleta de ovos, cada vez mais frequentes na unidade de conservação.
📙 Cultura
“Eu sou um contador de histórias. Entender isso libertou meu olhar para todos os palcos. A tela também é um palco, e o desafio foi aprender a criar para cada espaço. No meu aprendizado, o segredo foi entender quem está do outro lado. Me comunicar sempre foi uma prioridade na arte”, afirma o roteirista e dramaturgo Elísio Lopes Jr., cocriador e coescritor da série de suspense “Reencarne”, recém-lançada pela Globo e protagonizada por Taís Araújo. Em entrevista ao Mundo Negro, o artista fala sobre o processo de criação e produção da obra e revisita também sua trajetória enquanto primeiro autor negro a assinar uma novela da Globo, com “Amor Perfeito”: “Ser o primeiro não pode bastar. Estou num movimento como criador de expandir o olhar do público. Foram muitos anos da TV, o cinema, a literatura clássica brasileira criando arquétipos e lugares onde não cabiam personagens como os que eu desejo colocar no mundo”.
🎧 Podcast
O que acontece no campo reflete diretamente na vida de quem mora nas cidades. São os pequenos produtores os responsáveis pela alimentação de milhões de brasileiros que vivem nos centros urbanos, ao contrário da produção dos monocultivos em latifúndios. A série “Mulheres do Cerrado: Diálogos sobre Clima e Sistemas Alimentares”, do “Guilhotina”, produção do Le Monde Diplomatique Brasil, mostra como os sistemas alimentares, a exemplo da agroecologia, podem beneficiar toda a população, com alimentos mais saudáveis – livres do uso de agrotóxicos e transgênicos – e por que o Cerrado é central para isso.
🙋🏾♀️ Raça e gênero
“Ser mulher e, sobretudo negra, é ser alvo o tempo inteiro, mesmo na internet”, afirma Larisse Pontes, antropóloga e pesquisadora do Aláfia Lab, que estuda tecnologias digitais de comunicação e direitos humanos. Um relatório da organização analisou dados do Disque 100 entre 2011 e 2025 e revela que as mulheres negras são as principais vítimas de racismo digital. Essa população corresponde a 61% das denúncias. O Nós, Mulheres da Periferia destaca um projeto de lei tramita no Senado para incluir a violência eletrônica entre as formas de agressão reconhecidas pela Lei Maria da Penha. Apesar de ser um avanço, a pesquisadora defende medidas para reduzir a incidência dos ataques. “Letramento racial, de gênero e midiático são ações que podem endossar boas e importantes mudanças na nossa sociedade. Junto a mudanças legais e o constante monitoramento, parcerias com a sociedade civil, instituições de pesquisa, movimentos sociais, Estado e as próprias plataformas, acredito que podemos combater e reduzir esses casos.”





Excelente cobertura. É tão triste ler todas essas notícias, mas em tempos tenebrosos como esses que vivemos as informações de qualidade são ainda mais importantes. Obrigada!