Os impactos da pejotização e os cânticos de quaresma no Nordeste
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🔸 A deputada federal Erika Hilton (PSOL) recebeu o visto para os Estados Unidos com identificação de gênero masculino, apesar de ter em todos os seus documentos brasileiros o gênero feminino. “Os documentos que apresentei são retificados, e sou registrada como mulher inclusive na certidão de nascimento. Ou seja, estão ignorando documentos oficiais de outras nações soberanas, até mesmo de uma representante diplomática, para ir atrás de descobrir se a pessoa, em algum momento, teve um registro diferente”, escreveu a parlamentar nas redes sociais. O Notícia Preta informa que Hilton, que iria participar da Brazil Conference em Harvard e no MIT, não viajou por causa da alteração no passaporte. A deputada afirmou que acionará a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) contra o governo Trump, acusando os EUA de transfobia institucional.
🔸 “O projeto da extrema direita tem um conservadorismo moral muito grande. E, sobretudo, uma ordem sexual na qual há papéis definidos para homens e mulheres”, explica Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em entrevista ao Nexo, ele avalia que nomes como Donald Trump e Javier Milei instrumentalizam pautas antitrans para mobilizar sua base conservadora e consolidar poder político. Quinalha lembra que o projeto da extrema direita busca restaurar uma ordem patriarcal e heteronormativa e está apoiado em alianças internacionais que envolvem igrejas, ONGs e big techs. Ele destaca ainda o impacto simbólico de a Argentina ter restringido direitos de crianças trans, e alerta para o crescimento de projetos antitrans no Brasil, especialmente em São Paulo.
🔸 A suspensão dos processos de pejotização preocupa o Ministério Público do Trabalho (MPT). Em nota pública, o órgão afirma que a pejotização tem crescido de forma “vertiginosa”, como uma forma de mascarar vínculos empregatícios e retirar direitos como férias, 13º salário e FGTS dos trabalhadores. A prática, completa o MPT, impõe “severos prejuízos ao trabalhador brasileiro”. O Jota detalha a manifestação do órgão sobre a decisão de suspensão dos processos, anunciada no início da semana por Gilmar Mendes. Entre 2020 e 2025, mais de 1,2 milhão de ações foram movidas na Justiça do Trabalho para reconhecimento de vínculo. A nota defende que compete à Justiça do Trabalho julgar esses casos, e que a decisão do magistrado não pode enfraquecer políticas como cotas para pessoas com deficiência, combate ao trabalho escravo e proteção à maternidade. O órgão pede uma “reflexão socialmente responsável” pelo Supremo Tribunal Federal.
🔸 A propósito: a decisão do STF sobre pejotização adia indenizações a vítimas de trabalho escravo no Pará. A Repórter Brasil mostra que a suspensão dos processos impactou diretamente uma ação no estado contra a empresa Sipasa, acusada de submeter 16 trabalhadores a condições análogas à escravidão. Com o caso interrompido, os resgatados não recebem as indenizações já estabelecidas: R$ 25 mil por trabalhador e R$ 500 mil por danos morais coletivos. Segundo o MPT, a empresa usou intermediação fraudulenta por meio de uma terceirizada sem capacidade real, prática comum em casos de escravidão contemporânea. “A decisão do ministro Gilmar Mendes pode afetar as ações civis públicas ajuizadas pela prática de trabalho escravo, pois casos de submissão de trabalhadores a essa grave violação de direitos humanos ocorrem por meio de contratos com os ‘gatos’ que arregimentam trabalhadores para determinado empreendimento”, explica o procurador Luciano Aragão Santos.
📮 Outras histórias
Em vídeo: durante a quaresma, sertanejos do interior do Nordeste mantêm uma tradição – reúnem parentes e vizinhos em suas casas para rezar e cantar benditos e excelências diante de altares caseiros com imagens de santos. O Meus Sertões conta que esta é uma prática que remonta aos primeiros cristãos, cujas celebrações também ocorriam em ambientes domésticos, como mostram os Atos dos Apóstolos. Um vídeo enviado à reportagem pelo vaqueiro e rezador Cícero Lázaro Moreira, gravado em Piranhas (AL), mostra um desses encontros. Os cânticos de quaresma são puxados por Zé Cirilo e Siloé Avelino. Diante do altar, devotos os acompanham o louvor à Nossa Senhora, Jesus e santos do catolicismo popular.
📌 Investigação
Infecções, problemas de visão e lesões na pele atingem marisqueiras e pescadoras nordestinas. Elas estão expostas diariamente a águas contaminadas por casas e empreendimentos à beira de rios e lagoas, que recebem metais pesados despejados por empresas, resquícios de agrotóxicos usados em plantações e esgoto não tratado. A revista AzMina revela que a prática clandestina traz impactos diretos na saúde e na qualidade de vida das trabalhadoras das águas. Principais responsáveis pela coleta de mariscos, ostras e sururu em áreas costeiras e manguezais de Pernambuco e Alagoas, elas enfrentam jornadas de cinco a seis horas diárias imersas na água ou na lama. Os serviços de saúde, no entanto, ignoram os riscos a que estão expostas. “O atendimento foca apenas em vacina, câncer de mama ou de colo de útero, sem considerar a singularidade de cada uma”, afirma a médica Mariana Gurbindo Flores. “Não há agentes comunitários que façam a ponte entre essas comunidades e os serviços de saúde.”
🍂 Meio ambiente
Indígenas Kapinawá do Vale do Catimbau, entre o Agreste e o Sertão pernambucano, veem suas terras ancestrais ameaçadas por um leilão público, um projeto de parque eólico e uma crescente especulação imobiliária. Eles denunciam que estão cercados por interesses empresariais e políticos. Foi apenas após uma grande pressão que a Justiça suspendeu um leilão de 126 hectares de terras sobrepostas ao território indígena. A Marco Zero lembra que a Terra Indígena (TI) Kapinawá foi demarcada no final dos anos 1980 sem abarcar todo o território original, hoje palco de conflitos. O Parque Nacional do Catimbau, criado em 2002, sobrepôs algumas dessas áreas não demarcadas. Mas existem aldeias que ficaram de fora tanto da TI Kapinawá quanto do parque – justamente onde está a maioria das terras postas em leilão. Apesar de não serem demarcadas, essas aldeias são reconhecidas pelo povo, pelo cacique, pelo próprio estado de Pernambuco e pela União.
📙 Cultura
Em vídeo: “O racismo vai se atualizando em cada geração, as perseguições são diferentes, muda se o motivo, mas o princípio é o mesmo: aniquilar a população pobre, preta, periférica toda vez que ela ousa ascender”, afirma Thiagson de Souza, professor de música clássica e doutor em funk pela Universidade de São Paulo (USP). Apesar de mais da metade da população brasileira ser negra, suas expressões culturais – como samba, rap e funk – são distorcidas e inferiorizadas. No “Desenrola Aí”, produção do Desenrola e Não Me Enrola, o pesquisador traça um panorama histórico da perseguição da cultura afrobrasileira, da Lei da Vadiagem – criada após a abolição para encarcerar homens negros que expressavam sua arte por meio da música ou da capoeira – à Lei Anti-Oruam, uma proposta que, na prática, busca criminalizar gêneros como o funk e o rap.
🎧 Podcast
“A gente fez um robô, óculos para pessoas com deficiência visual. Eu acho que essas ideias podem impactar não só aqui, mas o mundo todo”, afirma o estudante Murilo da Silva Marcolino. Ele e outros colegas da Escola Estadual Munhoz Filho, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, transformaram as salas de aula em um espaço de tecnologia e inovação, com objetivo de melhorar a vida das pessoas. O “Vale Nota – Ensino Médio”, produção da Agência Mural, conta como os cientistas mirins, com o apoio dos professores, desenvolveram um laboratório de robótica na escola e têm participado de competições nacionais de tecnologia e inovação. “Nós temos aqui crianças fazendo programação, criando sites e fazendo isso para a sociedade. São garotos com um futuro brilhante pela frente”, diz o professor de sociologia José Augusto.
✊🏽 Direitos Humanos
O cyberbullying e as redes de pedofilia podem ser alimentados pelo compartilhamento excessivo de imagens e informações de crianças na internet. Um estudo publicado na “Revista Bioética” indica que a prática, conhecida como “sharenting” – junção dos termos em inglês share (compartilhar) e parenting (parentalidade) –, pode ameaçar a segurança da família e das crianças. Além de alimentar redes de pedofilia, as imagens são usadas para fraudes e roubos. O Colabora destaca os impactos psicológicos e sociais do desrespeito à privacidade de crianças. “Essa exposição nas mídias e redes sociais pode levar a riscos ao desenvolvimento da identidade da criança, levantando questões relacionadas a consentimento informado, privacidade, segurança, proteção e a própria relação com os pais”, diz trecho da pesquisa.