A partida de Pepe Mujica e a escravidão moderna de mulheres negras
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🔸 “Era uma ave rara em todo o continente, e no Uruguai era um extremo de austeridade.” O cientista político uruguaio Lihuen Nocetto se refere a José Mujica, também conhecido como Pepe Mujica. Agricultor, político e ativista, foi presidente do Uruguai entre 2010 e 2015. Morreu ontem, aos 89 anos, após meses de tratamento contra um câncer de esôfago. Em entrevista à CartaCapital, Nocetto afirma que a morte dele deixa um “vazio difícil de ser preenchido” na esquerda latino-americana. “Com caminhos mais simples, Mujica conseguiu atingir uma parcela fundamental do eleitorado: o povo simples, que fala sem grandes jogos de palavras e sem grandes complicações.”
🔸 Ex-guerrilheiro dos Tupamaros, Mujica passou 13 anos preso durante a ditadura e, ao ser anistiado, tornou-se deputado, senador e presidente, à frente de um governo que conciliou avanços econômicos com uma forte agenda progressista, como a legalização da maconha, o casamento igualitário e a descriminalização do aborto. O Nexo organiza sua trajetória em cinco blocos temáticos – da militância guerrilheira à presidência, passando pelo estilo de vida simples e as políticas progressistas que marcaram seu governo. Para a doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais Renata Peixoto, Mujica promoveu “a mais ampla agenda progressista da região”.
🔸 Nos 30 anos dos Grupos Especiais de fiscalização móvel, que resgataram mais de 66 mil pessoas de condições análogas à escravidão desde 1995, auditores denunciam que as operações estão sendo adiadas ou canceladas por falta de segurança. A Repórter Brasil explica que o problema começou depois que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) deixou de participar das ações, como consequência de uma portaria do Ministério da Justiça – para limitar a atuação da força policial às suas atribuições originais, que foram expandidas durante o governo Jair Bolsonaro. Sem a PRF, denúncias graves ficam sem resposta, e a “lista suja” de empregadores tende a diminuir, o que favorece os infratores.
🔸 “Enquanto a Justiça devolver mulheres negras aos seus exploradores, a abolição no Brasil seguirá inacabada. O Brasil celebra a cultura negra, mas se cala diante da violência que a população negra segue enfrentando”, escreve Naju Pereira, em artigo na revista AzMina. A jornalista mergulha na história de Sônia Maria de Jesus, mulher negra, surda e não alfabetizada, que viveu por mais de 40 anos em situação de trabalho análogo à escravidão na casa de uma família ligada ao Judiciário de Santa Catarina. Retirada da mãe na infância com a promessa de proteção, Sônia foi submetida a uma vida de exploração doméstica sem salário, registro ou liberdade. Mesmo após ser resgatada por denúncia anônima, a Justiça determinou seu retorno à casa dos antigos patrões, que alegaram querer adotá-la. “Levar uma mulher que sofreu violência de volta ao seu agressor põe em jogo a liberdade da mulher negra e expõe a continuidade do racismo estrutural no Brasil”, afirma Vanda Pinedo, representante do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Movimento Sônia Livre.
🔸 Em Brasília, a CPI das Bets: em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga as apostas online, a influenciadora Virginia Fonseca se recusou a informar qual foi o maior valor recebido por divulgar casas de apostas online. Segundo o Metrópoles, ela optou pelo silêncio em questões que pudessem incriminá-la. Questionada se se arrependia das publicidades, respondeu: “Eu não me arrependo de absolutamente nada que já fiz e acredito que tudo serviu de ensinamento”.
📮 Outras histórias
“Se houvesse um reconhecimento real da função que as casas de candomblé cumprem dentro da comunidade, talvez fossem vistas como um serviço público de acolhimento”, afirma ialorixá Vivian Basilio, do Ilê Axé de Yansã, no bairro do Cangaíba, na zona leste de São Paulo. Ela conta que sua mãe acolhia pessoas em situação de rua ou envolvidas com o crime, oferecendo cuidado espiritual e abrigo – uma prática que ela mantém. A Periferia em Movimento mostra como terreiros de candomblé liderados por mulheres funcionam como redes de acolhimento e assistência nas periferias de São Paulo. Aos 37 anos, Ana Paula Vieira lidera o Ilé Àse Omo Omisolà, em Mato Dentro, bairro periférico de Franco da Rocha, região metropolitana da capital. Ela sonha em transformar o terreiro em uma ONG com foco em educação para pessoas pretas e LGBTQIA+ marginalizadas.
📌 Investigação
Criminosos em fóruns da dark web têm conseguido criar imagens de exploração e abuso sexual infantil por meio de inteligência artificial de código aberto – sistemas sem licenciamento comercial, amplamente disponíveis na internet e que podem ser livremente modificados – e modelos menores e especializados, conhecidos como LoRAs. O Núcleo apurou como esses usuários têm treinado as ferramentas com fotos de crianças e adolescentes reais para produzir conteúdos de abuso sexual com alto grau de realismo. Os criminosos também ensinam outros a usar e treinar os softwares. “Cada garota é diferente. Cada uma tem uma qualidade e quantidade distinta de imagens de origem. O mais importante é a qualidade da imagem de treinamento e a escolha correta da imagem”, explicou um usuário que já criou centenas dessas imagens em um dos fóruns.
🍂 Meio ambiente
Acusados de liderar uma milícia rural para intimidar comunidades tradicionais em Correntina (BA), o policial militar Carlos Erlani Gonçalves Santos e o vigilante José Carlos Alves dos Santos foram presos no fim de março. Segundo o Meus Sertões, a dupla é suspeita de ameaças de morte, disparos de tiros, abertura de trincheiras em estradas e destruição de ranchos e cercas. As ações teriam sido encomendadas por fazendeiros que buscavam tomar áreas ocupadas há mais de dois séculos pelas comunidades de fundo e fecho de pasto, responsáveis pela preservação de nascentes de rios e da vegetação nativa de Cerrado na região. Os documentos do Ministério Público da Bahia afirmam que os crimes de Erlani e José Carlos ocorrem há pelo menos dez anos.
📙 Cultura
Em vídeo: “Convidei pessoas cujas histórias de vida são atravessadas pelo apagamento histórico para me contarem uma história que elas gostariam que fosse conhecida e lembrada. São várias histórias que muitas vezes se encontram”, afirma Andrea Lalli, artista plástica, arte-educadora e pesquisadora. A Agência Mural lembra que sua primeira exposição individual (“Tecituras de Fé”) levou ao Centro Cultural São Paulo obras feitas em bordados que resgatam as memórias dos migrantes nordestinos, sobretudo os que vivem nas periferias da capital paulista, inspirada no caso de sua própria família. Moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo, Lalli relembra a ocupação desses espaços pelas migrações e desterritorializações.
🎧 Podcast
Como pensar a política e o futuro quando se está perto da morte? Esta foi a pergunta que guiou a jornalista Carol Pires na entrevista que fez com o ex-presidente do Uruguai, José Mujica. No “Rádio Novelo Apresenta”, produção da Rádio Novelo, a repórter relembra quando foi ao país vizinho, em 2012, para escrever o perfil de um dos maiores nomes da esquerda latino-americana. Em 2024, a repórter reencontrou Mujica, na mesma chácara de onde nunca se mudou, já convivendo com um câncer no esôfago. Na ocasião, o ex-presidente uruguaio abordou a necessidade de formar sucessores e refletiu sobre a imaginação política da esquerda para seguir a luta.
✊🏾 Direitos humanos
“Esse 13 de maio que a gente aprendeu na escola, que a princesa Isabel assina, não é o 13 de maio que realmente aconteceu”, afirma a pedagoga Luiza Mandela, pesquisadora de relações étnico-raciais e educação, sobre a Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravidão no país. “Antes de 1888, várias revoltas já estavam acontecendo por todo o Brasil, inclusive a revolta liderada por Dragão do Mar de Aracati fez com que o Ceará fosse liberto em 1881.” Em entrevista à Alma Preta, a especialista fala sobre o apagamento da luta dos escravizados pela liberdade e as desigualdades enfrentadas no pós-abolição: “Não se fala do 14 de maio, em que as pessoas que ‘deixaram de ser escravizadas’ ficaram sem acesso à saúde, educação, moradia, emprego, sem uma vida digna, sem condições de se reerguer. E por isso nós sofremos as consequências até hoje”. Além de Dragão do Mar, diversas figuras negras históricas, como Luiz Gama, Luísa Mahin e José do Patrocínio, foram essenciais para a luta abolicionista.