As mães solo nas universidades e a reconstrução da Ancine
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🔸 No Brasil, 62% das vítimas de feminicídio em 2022 eram mulheres negras. Nos homicídios cometidos pela polícia em 2021, 84% dos mortos eram pessoas negras. Nas chuvas em Petrópolis (RJ) ou nas enchentes em Recife (PE), ambas em 2022, a maioria das pessoas afetadas era de mulheres negras moradoras de favelas e de bairros da periferia. Na edição 2022/2023 do relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, a Anistia Internacional reúne dados para confirmar que as pessoas negras são as grandes vítimas da ação e da omissão do Estado brasileiro. O Projeto Colabora compila os principais índices brasileiros no documento que traz dados de cerca de 156 países e territórios. Para Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, o relatório é “um chamado para a ação das autoridades, que têm, por dever, a obrigação de garantir o direito a todas e todos, fazendo com que as violações deixem de acontecer e não se repitam”.
🔸 Ainda sobre direitos humanos: passados quase cem dias do governo Lula, a reabertura da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) está em análise na Presidência. Em Brasília, cerca de 150 pessoas se reuniram ontem com o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania) para pedir, entre outras ações, a retomada da busca por corpos de desaparecidos e a conclusão de casos em aberto. A Agência Pública destaca que a Comissão Camponesa da Verdade (CVV), criada em 2012 por diversas organizações não governamentais, quer “reabrir o prazo para requerimentos dos familiares de mortos e desaparecidos, inclusive camponeses e indígenas”. “O diagnóstico hoje é que houve quase uma exclusão dos camponeses e indígenas [da Justiça de Transição até aqui]”, afirma Gilney Viana, especialista no tema da violência da ditadura contra os camponeses. Segundo ele, desde 1995, a CEMDP não recepcionou nenhum caso de indígena e, dos 50 casos de camponeses, 27 foram deferidos e 23, indeferidos.
🔸 Segundo o IBGE, 11 milhões de mulheres cuidam de seus filhos sem parceiros. Destas, 12% (cerca de 1,3 milhão) são universitárias – um quarto delas, negras. A Alma Preta explora os desafios da maternidade solo para as mães que estão na universidade. “Mensalmente, pago R$ 800 para a babá dos meninos. Ganho R$ 2.000 de salário. Então me sobra R$ 1.200 para pagar aluguel, água, luz, internet, compras. Com duas crianças fica muito difícil estudar, ainda mais por que às vezes preciso faltar à aula porque um dos dois está doente. Sem rede de apoio, parece que a vida acadêmica e a maternidade não combinam”, conta Gabriella Maria Martins dos Santos, de 24 anos, estudante do terceiro período de Administração na Universidade Federal do Ceará. A evasão universitária das mulheres se dá, sobretudo, pela maternidade, como afirma Taís Ferreira, docente da Faculdade de Educação da UFRGS. Segundo ela, mais de 5 milhões de crianças nem sequer têm o nome do pai no registro de nascimento. “Urge desnaturalizar esses índices e perguntar: onde estão esses homens que impunemente se furtam, todos os dias, de suas obrigações parentais?”
🔸 O Marco Civil da Internet em debate no Supremo Tribunal Federal (STF). Em audiência ontem, Google e Facebook disseram temer a “censura” em ambientes digitais. As empresas defendem a constitucionalidade do artigo 19, segundo o qual as plataformas podem ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros apenas se não tomarem ação contra conteúdo que for alvo de decisão judicial. Segundo a Lupa, o representante do Google Brasil, Guilherme Cardoso Sanchez, afirmou que uma decisão contrária ao artigo poderia influenciar provedores a tratar conteúdos que ficam em uma “zona cinzenta” como criminosos antes mesmo de haver judicialização da questão — o que, por fim, levaria à “banalização da censura”.
🔸 Ao final do dia, foram 16 posicionamentos pela constitucionalidade do artigo 19, quatro pela inconstitucionalidade e 12 neutros. Hoje, outras 16 organizações vão se posicionar no STF. O Núcleo traz o balanço completo do primeiro dia de audiência, detalha os votos e ressalta que a neutralidade de membros do governo pode indicar uma mudança de trajetória. No final de janeiro, por exemplo, o Ministério da Justiça apresentou uma proposta de medida provisória que previa uma responsabilização para redes sociais fora do que prevê o artigo 19.
🔸 “Boa sorte, amigo.” A mensagem no Twitter foi postada antes do ataque à Escola Estadual Thomazia Montoro, na Vila Sônia, em São Paulo, como forma de incentivo ao adolescente que matou a facadas uma professora e feriu outras quatro pessoas no colégio. Publicada numa subcomunidade destinada a conteúdos que idolatram autores de massacres em escolas, da qual o adolescente fazia parte, a mensagem, bem como outras na mesma linha, foi apagada. O Aos Fatos identificou ao menos 51 perfis no Twitter que produzem ou compartilham conteúdos de idolatria a tais criminosos. Depois da repercussão do atentado à escola em São Paulo, 14 dos perfis monitorados deletaram a própria conta ou a tornaram protegida.
📮 Outras histórias
“Rachadinha” no Paraná. A vereadora de Curitiba Noemia Rocha (MDB) foi alvo de busca e apreensão em seu gabinete e em outros sete endereços. A investigação foi disparada por uma denúncia anônima, segundo a qual a vereadora obrigava os servidores a pagar contas pessoais dela – até mesmo as despesas do casamento de sua filha. O Plural explica que o crime de rachadinhas ocorre quando os funcionários comissionados “devolvem” parte de seus salários ao parlamentar. No caso de Noemia Rocha, o dinheiro devolvido era também redistribuído para pessoas que trabalhavam informalmente no gabinete e atuavam em um programa de rádio da parlamentar.
📌 Investigação
A mortalidade infantil dos Xavante é cinco vezes maior do que a média brasileira. A taxa encontrada foi de 72 óbitos para cada mil crianças nascidas vivas em 2022, ou seja, o número está próximo à situação trágica registrada na terra Yanomami. O Joio e O Trigo obteve dados que revelam ainda as condições de crianças Xavante: 5% delas, até os quatro anos de idade, estavam desnutridas em 2021. O índice é superior àquele apontado pelo Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRG), segundo o qual 2,9% das crianças brasileiras de até cinco anos estavam abaixo do peso ideal em 2019. Profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) apontaram que o cenário foi de abandono no governo Bolsonaro – unidades chegaram a ficar cerca de um ano sem médicos. E ainda é possível que haja subnotificação nos registros, como alerta a pesquisadora que estuda a saúde de crianças Xavante, Aline Alves Ferreira: “Os dados da Sesai são muito fragmentados e não são alimentados com a frequência ideal. A maioria das vezes em que comparei informações do sistema com aquelas colhidas em trabalho de campo, as informações não batiam”.
🍂 Meio ambiente
Para mitigar as mudanças climáticas, cientistas formam uma rede interdisciplinar e internacional de pesquisa. É o caso do projeto RCN g2p2pop, que atualmente reúne mais de 300 pesquisadores de 23 países. Nos últimos oito anos, o grupo tem investigado os impactos da crise climática em vertebrados, desde o nível molecular, a partir da análise genética, passando pela forma como as possíveis alterações se traduzem na aparência desses animais até mudanças nas populações de espécies. O Eco dá início a uma série de reportagens sobre os resultados desses estudos e explica a necessidade de um novo modo de fazer ciência para entender e enfrentar as mudanças climáticas. “A ciência é construída a partir da diversidade, da diversidade de pontos de vista, de opiniões e de abordagens. Então, a reunião dessas pessoas aqui torna o encontro e o debate mais ricos, além da gente poder formar a nossa próxima geração de pesquisadores”, defende a pesquisadora do Instituto Butantan, Erika Hingst-Zaher.
A cooperação internacional também no combate aos crimes ambientais. Diante da complexa cadeia de ilegalidades – cujas infrações vão do desmatamento ao tráfico de drogas –, a parceria ajuda a responsabilizar não apenas os vendedores de madeira ilegal no Brasil, mas também os compradores. Em artigo no Le Monde Diplomatique Brasil, a doutora em Direito e pesquisadora da Plataforma CIPÓ, instituto dedicado a questões de clima, governança e paz, Flávia do Amaral Vieira analisa como pode funcionar a colaboração entre países para fiscalizar todos os elos da cadeia que financia e lucra com a destruição da Amazônia, como a criação de equipes conjuntas de investigação e rastreamento das teias produtivas.
📙 Cultura
“A Ancine sobreviveu ao bolsonarismo mais do que outras instituições culturais.” Ana Paula Sousa é professora e pesquisadora de políticas culturais e regulação do mercado de audiovisual brasileiro e explica que, embora a agência tenha entrado em crise, suas estruturas não foram abaladas por “gestores delirantes” no comando, como aconteceu com a Fundação Palmares e a Funarte. Segundo o Headline, o momento do órgão é de reconstrução, coroando um ciclo de filmes atuais como “Medida Provisória”, “Medusa” e “Mato Seco em Chamas”. O cinema fora do eixo Rio-São Paulo também floresce, a exemplo de “Rio do Desejo”, dirigido pelo diretor baiano Sergio Machado e roteirizado em parceria com o escritor amazonense Milton Hatoum. O longa está em cartaz no país desde a última quinta-feira.
Vozes de mulheres chamavam a atenção de quem saía da estação Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, na última sexta. Era o Sarau Pela Vida de Todas as Mulheres, promovido pela Escola Feminista Abya Yala, com participação do grupo Coco do Bonde. Além das palavras de resistência, elas distribuíram kits de higiene pessoal para as passageiras no retorno para casa. A Periferia em Movimento conta que o objetivo da manifestação poética era engajar o público no combate à violência contra mulheres. Embora nem todas pegassem os panfletos, o número de pessoas no ato cresceu durante a releitura da música “Acorda, Maria Bonita”, com os versos: “Acorda Maria Bonita / Levanta se você quiser/ Os tempos estão mudando /E hoje é o homem quem faz café”.
🎧 Podcast
A saúde sempre foi uma das principais pautas a ser considerada pela política indigenista no Brasil. O SUS é imprescindível para atender aos indígenas, mas precisa se aliar aos saberes ancestrais dos povos. Ter seus sistemas próprios de saúde – com plantas, ervas e processos de cura – que funcionam há milhares de anos sempre foi uma reivindicação das populações originárias. O “LatitudeCast”, produção da Amazônia Latitude, conversa com Ana Lúcia Pontes, médica sanitarista e coordenadora do Centro de Operações Emergenciais Yanomami, que se estabeleceu em 26 de janeiro para organizar as estratégias sobre a Terra Indígena Yanomami, em Roraima. “O que estamos vendo é a necessidade de revisão da política de saúde dos povos indígenas”, afirma Pontes.
🙋🏾♀️ Raça e gênero
Transfobia e racismo andam de mãos dadas. Pelo sexto ano consecutivo, travestis e transexuais negras são aquelas que mais morrem, de acordo com dados do último Dossiê de Assassinatos, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Em 2022, o grupo representou 76% das mortes registradas, já a média entre os anos de 2017 e 2022 foi de 79,8%. Segundo a Gênero e Número, isso é resultado do que a pesquisadora Yordanna Lara chama de “afronecrotransfobia” na dissertação de mestrado em que analisa como se estabelece o projeto de genocídio da população trans negra, mostrando como as duas opressões se entrecruzam.