As famílias de vítimas do massacre no Rio e as rotas na floresta amazônica
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🔸 Dias depois da chacina policial no Rio de Janeiro, famílias seguem impedidas de ver os corpos no Instituto Médico Legal (IML) antes de assinar os atestados de óbito. Pai de uma das vítimas do massacre nos complexos do Alemão e da Penha, Alex tenta encontrar o corpo do filho desde terça-feira. Ontem, depois de mais de três horas de espera no IML, um funcionário teria avisado que ele não poderia vê-lo. Alex teve o filho decapitado: “Ele estava com marca de pancada no pulmão, no esôfago, entendeu? E ele não tinha uma marca de tiro. Decapitaram ele, isso aí é execução”. A Alma Preta mostra que as famílias das vítimas são obrigadas a lidar com o desrespeito ao luto e o descaso com o processo de reconhecimento dos corpos. Na quarta-feira, o Detran ao lado do IML Afrânio Peixoto, no centro do Rio, chegou a abrir banheiros, mas ontem familiares aguardaram em pé, sob chuva e sem assistência. A Rede de Atenção a Vítimas de Violência aponta uma série de violações dos direitos humanos com os familiares. “Não tem como entrar lá, a nossa equipe não está conseguindo entrar para acolher as famílias, que estão esperando aqui na frente do IML. Não tem água, banheiro ou lugar para sentar”, diz uma integrante da rede. “É uma revitimização para quem já passou pela dor da perda. Já estamos passando por esse genocídio, essa chacina e não temos acesso ao mínimo.”
🔸 “No Brasil, não temos pena de morte como mecanismo legal, mas existe uma autorização social, política e econômica para chegar nas favelas e regiões periféricas ‘atirando na cabecinha, conforme anunciou, em 2018, o ex-governador Wilson Witzel’”, escreve Rachel Gouveia Passos, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora de livros sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe. Em artigo no Le Monde Diplomatique Brasil, ela destaca que a “guerra às drogas” é a justificativa usada para manter um estado permanente de guerra e ódio contra os pobres, com impactos físicos e psíquicos profundos nas comunidades. Passos afirma: “O projeto político de extermínio continuará produzindo dor e destruição, o que significa que não estamos tratando apenas de segurança pública. A pauta da saúde mental é fundamental, uma vez que estamos lidando com um estado permanente de guerra que continuará perpetuando o extermínio físico e psíquico. Diariamente temos a produção do trauma psicossocial que precisa ser tratado como caso de saúde pública e criado dispositivos de cuidado em saúde mental, na perspectiva da atenção psicossocial, para viabilizar suporte e reparação para as pessoas lesionadas pela violência armada. Ou continuaremos produzindo dor e destruição?”.
🔸 “Foi um desastre humano, algo que, fundamentalmente, coloca em questão o próprio Estado Democrático de Direito”, afirma Pablo Nunes, diretor do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. Em entrevista à Agência Pública, ele lembra que décadas de incursões letais da polícia nas favelas não reduziram o poder das facções. Ele defende investigações financeiras das facções e a cooperação federativa – a exemplo da Operação Carbono Oculto, que desnudou os esquemas financeiros que mantêm o PCC. “É muito ilusório imaginar que uma incursão de um dia numa favela na zona norte do Rio de Janeiro vai responder a uma cadeia do crime organizado que não está apenas nas favelas, está em diferentes espaços. (...) É uma cadeia que implica em muitos elos e grande parte desses elos, que são os mais fortes, e que sustentam essa cadeia, não estão nas favelas”, explica. Para Nunes, a PEC da Segurança Pública é “insuficiente”, mas “acerta em um diagnóstico consolidado na área, de estudiosos de segurança pública, que é a falta total de cooperação entre os entes federativos em relação à segurança pública”.
🔸 Falando em PEC da Segurança… o governo Lula tem pressionado a Câmara a aprovar a proposta, enviada ao Congresso em abril e aprovada em julho pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Na quarta-feira, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República lançou uma campanha que defende a PEC como o melhor caminho para enfrentar o crime organizado. O Aos Fatos explica os principais pontos da proposta, que pretende incluir o Sistema Único de Segurança Pública na Constituição, garantindo integração entre os entes federativos, além de ampliar atribuições da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Nesta semana, o relator Mendonça Filho prometeu um parecer até o final de novembro e, em dezembro, a votação na comissão especial da Câmara que discute o tema.
🔸 Em tempo: no mesmo dia do massacre no Rio, o Superior Tribunal de Justiça determinou que a Refinaria de Manguinhos, suspeita de envolvimento em irregularidades bilionárias e vínculos com facções criminosas, siga inoperante. A Refit, como foi rebatizada, estava fechada desde setembro, mas o governo de Cláudio Castro (PL) solicitou à Justiça do Rio a retomada das atividades. Ele conseguiu uma liminar nesta segunda-feira, derrubada em seguida a pedido da Fazenda. Segundo a Agência Nossa, a Receita Federal suspeita que postos de combustíveis no Rio controlados por organizações criminosas estivessem sendo abastecidos com produtos da Refit. “Nós temos que operar para asfixiar o que irriga o crime organizado, o que o abastece de recursos para compra de armamentos e aliciamento. Temos que agir no andar de cima também”, disse o ministro Fernando Haddad.
📮 Outras histórias
- Gregório Manoel Rodrigues tem 80 anos e é guardião da memória do Massacre de Pau de Colher (1937-1938), quando centenas de camponeses seguidores dos beatos José Senhorinho e Joaquim Bezerra foram mortos por forças policiais e do Exército na divisa entre Bahia, Pernambuco e Piauí. Nascido no local do conflito sete anos depois do massacre, ele se esforça para resgatar a história que as autoridades tentam esconder, como narra o Meus Sertões. No território, Rodrigues demarcou o antigo acampamento estabelecido por Senhorinho para evitar que ele fosse ocupado, também sinalizou covas coletivas (uma delas com 172 corpos) e pontos-chave do confronto. Enquanto reivindica um museu e um monumento, ele segue conduzindo pesquisadores e moradores pelas trilhas da história, preserva relíquias, como ossos e munições da época, e denuncia o apagamento e os ataques ao juazeiro símbolo da resistência. “Parece que o local onde ocorrem muitas mortes nunca tem paz”, afirma. 
📌 Investigação
- A Amazônia Legal abriga 632 territórios quilombolas delimitados oficialmente ou de forma autônoma pelas próprias comunidades. Este número é apresentado pela primeira vez, a partir de um levantamento do Instituto Socioambiental e pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Os dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) registram apenas 166 territórios na região. A InfoAmazonia teve acesso exclusivo ao relatório feito pelas organizações, cujas informações traçam o tamanho e importância da presença quilombola na Amazônia. A titulação dos quilombos é um fator decisivo para a preservação ambiental: a perda de cobertura florestal é 60% menor onde o título já foi concedido – territórios já titulados mantêm 91% de suas florestas, enquanto os não titulados conseguem preservar 76%. 
🍂 Meio ambiente
- Projeto do governo brasileiro para integrar economicamente o Centro-Oeste e a Amazônia aos países andinos – Peru, Chile e Bolívia –, o Rotas de Integração Sul-Americana, com cinco caminhos em todo o continente, reproduz o padrão de erros das obras de infraestrutura da região, com riscos socioambientais. Segundo O Varadouro, um novo estudo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) analisou a viabilidade da Rota Amazônica e do Quadrante Rondon, com estradas que atravessariam áreas sensíveis da Amazônia central. “Ambas as rotas compartilham riscos semelhantes: desmatamento, grilagem e aumento da pressão sobre comunidades locais e povos indígenas. Além disso, reproduzem promessas econômicas que tendem a não se concretizar diante dos altos custos ambientais e sociais”, afirma o pesquisador William Leles de Souza, coautor da pesquisa. 
📙 Cultura
- Em vídeo: na Barroca do Amanhã, as crianças podem participar do Carnaval, aprendendo a sambar, cantar e tocar instrumentos. Localizada no Jabaquara, zona sul de São Paulo, a Barroca inseriu crianças em sua bateria em 2000, com participação no desfile dos adultos. Neste ano, com a criação do Desfile das Crianças pela Liga das Escolas de Samba de São Paulo, foi lançado o projeto da escola de samba mirim. “É para as crianças terem as mesmas oportunidades que os adultos”, afirma a porta-bandeira Domênica Lima da Costa, 9 anos. A Agência Mural mostra como a iniciativa tem o poder de incentivar as crianças na preservação e engajamento com a cultura do Carnaval nas periferias. “Cada setor que trabalha na arte do Carnaval também colabora para a formação humana das crianças. Tudo é pertinente à idade delas: as danças e fantasias são pensadas levando em consideração a não adultização”, diz Iris Strecker Cremasco, coordenadora do projeto. 
🎧 Podcast
- “O fato de a Conferência do Clima estar voltando para a América Latina, e não para qualquer lugar, mas para a Amazônia é por si só uma grande declaração. O lugar não nos deixa esquecer que precisamos proteger as florestas, recuperar solos degradados e avançar na agricultura sustentável”, afirma Christiana Figueres, ex-chefe do Clima das Organizações das Nações Unidas (ONU) e uma das principais arquitetas do Acordo de Paris. O “Las Niñas”, produção da Trovão Mídia, conversa com a antropóloga, economista e diplomata costarriquenha sobre as expectativas para a COP30, que começa em dez dias, em Belém (PA), a urgência de uma transição energética justa e definitiva para longe dos combustíveis fósseis e sua filosofia de vida – o otimismo teimoso. 
💆🏽♀️ Para ler no fim de semana
- “Uma parteira de verdade é médica, conselheira, educadora. Trabalha por amor e por necessidade. A gente cuida da vida”, afirma Maria Zenaide de Souza Carvalho, que mantém viva a tradição das parteiras acreanas, com seu conhecimento matriarcal, unindo cantos, rezas e saberes da floresta. Ela é considerada uma parteira tradicional, ofício registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio brasileiro. Segundo o dossiê de registro, esse é um bem cultural ancestral e majoritariamente feminino. O Amazônia Vox narra a trajetória de Maria Zenaide, que consegue identificar a posição do bebê pelo toque. “Meu desejo é que quando eu partir, outras assumam esse compromisso. Não pode acabar. Mulher não pode ficar sozinha, na dor e no medo. Parteira é quem cuida da vida – o maior tesouro que existe.” 




