ESPECIAL: As veredas do Cerrado, a guitarrada do Pará e o 'sertão' carioca
Uma curadoria do melhor do jornalismo digital, produzido pelas associadas à Ajor. Novos ângulos para assuntos do dia
Oi, gente! Bom dia.
Amanhã é o Dia Mundial do Jornalismo. Em comemoração, a Brasis dedica sua edição especial mensal a uma das fortalezas da nossa curadoria: o jornalismo local. Reunimos aqui histórias que foram publicadas ao longo de setembro e que reforçam o jornalismo como uma forma de preservar memórias e construir futuros.
Do bairro de Caruara, em Santos, que guarda um oásis de Mata Atlântica preservada, às lembranças de Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, onde antigos moradores recordam rios limpos e a solidariedade comunitária, o jornalismo local é quem dá nome e sentido a esses territórios.
É também esse jornalismo que nos apresenta protagonistas como a chef indígena Neurilene Cruz, que transforma a culinária do povo Kambeba em ferramenta de autonomia; ou como Jessé, entregador por aplicativo em Curitiba, que narra sua rotina de 50 km por dia com câmera no peito e música na caixa de som. Entre a luta dos quilombolas do Brejão dos Negros em Sergipe, a afirmação da guitarrada paraense como patrimônio cultural, o cinema quilombola no Rio Grande do Sul e a preservação da memória da travesti Fernanda Benvenutty em Natal, está a prova de que jornalismo é ponte — entre passado e futuro, entre comunidades e o país, entre o local e global.
Boa leitura!
🔸 Na área continental de Santos (SP), há uma “joia verde”: mais de 1.317 quilômetros quadrados de Mata Atlântica preservada. Trata-se de Caruara, um bairro que completou 74 anos neste mês e que abriga cerca de 5 mil moradores, localizado a cerca de 60 quilômetros do centro histórico da cidade. O Juicy Santos narra a origem do bairro conhecido por ter rios, manguezais e atrações como o Portinho, a Cachoeira do Castelinho e o Poço Verde. A identidade do Caruara é também marcada pelo fato de funcionar como polo metropolitano para moradores de Bertioga e Guarujá. Apesar da riqueza natural, a área enfrenta problemas de infraestrutura: está entre os poucos bairros de Santos sem rede de esgoto, e o despejo irregular contamina o Canal de Bertioga, uma ameaça ao meio ambiente.
🔸 Todos os dias, cerca de 40 carrinhos de cachorro-quente ocupam o calçadão de Osasco (SP), num esquema de rodízio mensal entre 80 comerciantes licenciados. Não à toa a cidade ganhou fama de “capital do cachorro-quente”. Em média, mil lanches são vendidos por dia com preços entre R$ 8 e R$ 20 e receitas que variam do simples ao elaborado. A Agência Mural conversa com os vendedores para contar suas trajetórias. Cláudio Benício, por exemplo, vende hot dog desde 1989 e sustenta a família com o negócio. “A técnica é fazer um lanche para os clientes como se fosse para mim. Se quero comer um lanche bom e saboroso, meus clientes também merecem. Eles estão em primeiro lugar”, diz. Já Fábio de Jesus, ex-técnico de enfermagem, se reinventou na pandemia: “Por ser um homem gay, eu achava que não iria conseguir clientes e tive que bolar uma ideia para fazer algo diferente. Comprei os adesivos cor-de-rosa e personalizei o carrinho”, conta o dono do Hot Dog Pantera, carrinho que virou atração no calçadão de Osasco.
🔸 “Sertão carioca”. A favela de Rio das Pedras, na região Oeste do Rio de Janeiro, foi assim descrita pelo naturalista Magalhães Corrêa, nos anos 1930. Nas duas décadas seguintes, o território rural e bucólico atraía tanto elites quanto famílias de baixa renda pela oferta de belezas naturais. No projeto “Lembranças: Rio das Pedras”, a Agência Lume resgata a história da comunidade. Apesar das dificuldades dos anos 1940 e 1950, como transporte escasso, falta de telefone, água encanada e hospitais próximos, antigos moradores lembram o rio limpo, cheio de peixes e camarões, a Lagoa da Tijuca preservada, a solidariedade de parteiras e a sensação de segurança. Onde hoje funciona uma escola municipal, conta Maria da Rocha Robadey, 80 anos, “havia muitas plantações de cana, de banana, batata doce, aipim, e tinha uma pequena horta que era para o consumo da família”. Dona Célia Maximiniana, nascida em Rio das Pedras em 1953, tem saudades do rio: “Ah, o rio, que era bom, tinha peixe, lavava a roupa no rio. Era tudo limpinho, era uma beleza”.
🔸“O restaurante Sumimi significa o amor pelo trabalho que iniciamos e queremos ser reconhecidos”, afirma a chef indígena Neurilene Cruz, responsável por criar pratos tradicionais do povo Kambeba no Sumimi, na aldeia Três Unidos, no Amazonas. O “Cirandeiras”, produção da Rádio Guarda-Chuva, narra sua trajetória e aborda o legado alimentar dos povos indígenas para a culinária brasileira, desde o uso da mandioca até as técnicas como o pilão para socar alimentos. Além de promover a gastronomia ancestral em seu território, com peixes pescados na hora e frutas colhidas no pé, Neurilene também atua no turismo de base comunitária e dá aulas de culinária indígena para ajudar outras mulheres a se tornarem mais autônomas.
🔸Árvore, bebida, ritual e lugar místico são alguns dos muitos sentidos da jurema, que pode se tornar Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil. Lideranças de religiões de matriz afro-indígena da Paraíba entregaram o pedido de registro ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) neste mês. Esse é um marco histórico diante dos séculos de perseguição aos praticantes. A Revista Alagoana mergulha na diversidade de significados e experiências que envolvem a jurema, como a religião afro-indígena que surgiu no Nordeste a partir de um ritual praticado por etnias originárias antes da colonização portuguesa. Seu reconhecimento como patrimônio é um caminho para desmistificar preconceitos, combater o apagamento e valorizar os saberes ancestrais.
🔸As veredas do Cerrado estão à beira do colapso e podem desaparecer em 50 anos, alertam pesquisadores. Localizados no Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu, norte de Minas Gerais, esses oásis alimentam as nascentes e sustentam a biodiversidade e os modos de vida tradicionais. O Projeto Preserva informa que poços clandestinos, monoculturas e a crise climática estão acelerando a exaustão dos oásis do sertão. “Como as veredas estão secando, a vegetação está mudando e muitas espécies de ambientes úmidos estão deixando de existir. Estão sendo substituídas por espécies do Cerrado”, afirma a coordenadora do Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração, Yule Nunes. A manutenção da água e seu fluxo na vereda protege o ecossistema dos incêndios.
🔸Dentro do Quilombo de Vó Dôla, em Vitória da Conquista, surgiu o pré-vestibular Mãe Fátima de Xangô. É lá que José de Luca, 25 anos, voltou a sonhar com a universidade. Ele ficou cinco anos sem estudar depois de completar o ensino médio. Agora, estuda outra vez para tentar realizar o desejo de ser advogado. O Conquista Repórter conta que o pré-vestibular é um dos mais de 380 cursinhos populares do Brasil selecionados pelo Ministério da Educação (MEC) para integrar a chamada Rede Nacional de Cursinhos Populares (CPOP). “Cansamos de ser estatística da violência, agora vamos ser estatística da educação”, afirma a coordenadora Laiz Souza. Com recursos de até R$ 163,2 mil por projeto, os cursinhos garantem bolsas de R$ 200 aos alunos e a contratação de professores. O Mãe Fátima, por exemplo, conta hoje com 12 docentes e três arte-educadores. Outra referência é o Pré-Vestibular Dandara dos Palmares, ativo desde os anos 1990 e conhecido por ser não só um espaço de ensino, mas de acolhimento e apoio.
🔸Uma das expressões mais marcantes da cultura amazônica, a guitarrada do Pará foi oficialmente reconhecida como manifestação da cultura nacional, após o presidente Lula sancionar a Lei 15.192, publicada em agosto. A Revista Cenarium lembra que, com origem no Norte do país, a guitarrada surgiu da fusão da guitarra elétrica com ritmos tradicionais da Amazônia, como o carimbó, a lambada e a cumbia. A sonoridade se expandiu por toda a região e também chegou a países vizinhos, como Bolívia e Venezuela, onde também se misturou a outros ritmos populares. “Pode ter desdobramento de incentivo para a afirmação e expansão de um gênero musical do Pará. A música feita na Amazônia é uma das mais completas do planeta, capaz de despertar a autoestima do nosso povo, gerar emprego e renda, além de favorecer o entendimento coletivo das nossas potencialidades culturais”, afirma o multi-instrumentista, arranjador e produtor musical Manoel Cordeiro, considerado um dos mestres do gênero.
🔸Há mais de 20 anos, o Brejão dos Negros luta para existir formalmente. Em 2023, o governo federal reconheceu 8 mil hectares do território quilombola localizado em Sergipe, mas, apesar da festa, os moradores ficaram mais vulneráveis. Na série “Brejão, Quilombo de Reexistência”, a Mangue conta que, sem o último ato do processo – o decreto de titulação das terras –, os quilombolas das comunidades da Resina, Santa Cruz, Brejão, Carapitanga e Brejo Grande passaram a sofrer mais ameaças de fazendeiros, carcinicultores, empresas petrolíferas e mineradoras. “Não ter a posse definitiva mostra o racismo dentro do Estado e o poder de influência dos fazendeiros. Não ter a titulação intensifica conflitos com os grandes empreendimentos aumentando a degradação da natureza”, afirma Magno de Jesus, morador da comunidade de Santa Cruz. Com terreno fértil, plano, cercado por manguezais e lagoas e banhado pelo rio São Francisco, a área registra casos de perseguições, ameaças de morte e violações ao meio ambiente.
🔸“O cangaço divide opiniões porque já nasceu cheio de contradições. Para uns, era rebeldia diante da fome e da injustiça; para outros, pura violência. O sertão sempre foi feito dessas nuances: o mesmo homem que ajudava um pobre num dia, podia cometer um crime bárbaro no outro”, afirma Robério Santos, jornalista, pesquisador, professor e escritor. Ele também é criador do canal O Cangaço na Literatura, foi consultor da novela “Guerreiros do Sol” e ator do filme “Zé da Cupira, o Cangaceiro de Poço Redondo”. Em entrevista à Cajueira, Santos fala sobre a história do cangaço e como surgiu seu interesse sobre o tema – comum no dia a dia em Nossa Senhora Aparecida, onde cresceu. “As histórias do cangaço estavam em todo canto: nas conversas de família, nas fotos antigas, nos cordéis que rodavam nas casas dos amigos. Desde menino me encantei com esse universo e comecei a juntar tudo o que encontrava. O que era curiosidade de garoto virou paixão de pesquisador, e hoje é missão de vida.”
🔸Quando uma sumaúma bicentenária caiu em Belém, Moisés Larrat se lembrou das sementes da árvore que havia recolhido do chão meses antes. “Quando ela caiu [em 2023], foi muito doloroso. Mas eu tinha as sementes. Tinha vida guardada”, lembra. Eram cerca de 300 delas, e Larrat as colocou para germinar na varanda do apartamento onde mora com a família. A Amazônia Latitude narra o trabalho do “semeador de sumaúmas” na capital paraense: ele plantou muda por muda, como se multiplicasse a vida da árvore-mãe que, por mais de dois séculos, foi testemunha silenciosa da história da cidade, plantada em frente à Basílica Santuário, onde todos os anos passam milhares de fiéis durante o Círio de Nazaré. Hoje, restam somente quatro mudas daquela “sumaúma-mãe”, já prontas para ganhar solo. O cuidado de Larrat, que trabalha sem patrocínio, é especialmente valioso para Belém – a capital menos arborizada do país, segundo o IBGE. Lá, apenas 44,65% das ruas tem, pelo menos, uma árvore.
🔸Símbolo da luta LGBTQIA+ no Nordeste, a travesti Fernanda Benvenutty (1962–2020) foi parteira, artista circense e militante. Agora, em Natal, sua história será relembrada na Semana Benvenutty, um evento com cinema, oficinas, debates, performances e um grande baile. A Saiba Mais traz a programação e resgata a trajetória da travesti que nasceu em Remígio, na Paraíba, e foi expulsa de casa na adolescência, para ser acolhida no Circo Babilônia, onde começou a carreira artística como palhaça. Mais tarde, em João Pessoa, estudou enfermagem e se tornou parteira na Maternidade Cândida Vargas. Em 2022, ela fundou a Associação das Travestis da Paraíba (Astrapa) e levou a pauta trans para dentro das instituições. “Apresentar o nome da Fernanda para Natal é também educar sobre o legado que queremos carregar: um legado de prosperidade trans, de luta, de ativismo e de artivismo, de irreverência”, diz Ayira Sizernando, uma das fundadoras da Casa das Benvenutty, coletivo político-cultural em João Pessoa.
🔸Para contrariar o estigma de secura, miséria e desespero relacionado ao Semiárido cearense, os fotógrafos Marcos Vieira e Celso Oliveira mergulharam nas entranhas do território. A ideia era retratar a beleza oculta, o pulsar da vida e a complexidade do sertanejo. As fotografias foram reunidas na exposição “Ser-tão: Cartografias da Alma em Luz e Sombra”, que vai percorrer universidades e institutos federais de todo o estado. Ao Meus Sertões Vieira fala sobre o processo de criação das obras: “Este projeto é fruto de uma vivência profunda no Ceará e no Nordeste, onde a câmera serviu como extensão do olhar de pesquisador e artista. O processo envolveu uma imersão etnográfica, cultivando laços com as comunidades e capturando a autenticidade dos momentos que só o tempo e a familiaridade podem revelar. Não se tratou apenas de registrar, mas de compreender os ciclos da natureza, a resiliência nos rostos e a poesia nas texturas”.
🔸Jessé tem 33 anos e é entregador por aplicativo em Curitiba. Com uma câmera presa ao corpo, ele registra seus trajetos de bicicleta pela capital paranaense. Já são dez anos de labuta e histórias. O Plural resgata a história do entregador e acompanha sua rotina como parte do projeto “Periferias Plurais”, que convida jovens de Curitiba e região a falar sobre suas vidas e comunidades. Jessé pedala em média 50 km por dia na tentativa de garantir pelo menos R$ 100 por jornada. Mas o valor que recebe das plataformas é baixo – a taxa média é de R$ 7 por entrega. “Uma taxa justa seria de no mínimo R$ 15. É a minha vida que está em jogo, são muitos riscos…”, afirma. Ele embala os percursos nas ruas da cidade com uma playlist reproduzida numa caixa de som portátil. A música o deixa animado (“Parece que não preciso nem de café para ficar acelerado”) e também funciona como uma sirene, alertando motoristas sobre sua presença no trânsito.
🔸 O cinema quilombola ajuda a construir a identidade entre as crianças nas comunidades, revela a experiência do projeto Quilombocine, organizado pela Frente Quilombola do Rio Grande do Sul e financiado pela Lei Aldir Blanc. Na sala de aula do Quilombo Kédi, no bairro Boa Vista, em Porto Alegre (RS), a iniciativa exibiu o documentário “Vamos em Batalha”, feito em conjunto pelo Cinema de Griô e Cine Quilombola do Instituto Marlin Azul. Segundo o Nonada, a produção traz vozes de crianças que narram suas cartas escritas para parentes e amigos. “Tem várias crianças, e também adultos, que acham que ser chamado de quilombola é pejorativo. Com o Quilombocine, a gente utiliza filmes com linguagem acessível para que as crianças possam entrar já desde pequenas nessa vibe do pertencimento, do lugar onde elas vivem”, afirma Sandro Lemos, liderança do projeto e do quilombo Lemos, na zona sul da capital gaúcha.