ESPECIAL: A falta de consenso, as decisões, o agro e os povos originários na COP30
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Oi, gente! Bom dia.
A COP30, a Conferência do Clima das Nações Unidas realizada em Belém (PA), encerrou suas duas semanas de negociações com impasses em temas centrais da transição para longe dos combustíveis fósseis e do desmatamento, mas também com decisões inéditas. Nesta edição especial da Brasis, reunimos reportagens que mostram como a conferência foi muito além das salas fechadas da diplomacia.
Nesse período, Belém se afirmou como capital simbólica de outras leituras da crise climática. A presença recorde de povos indígenas se chocou com seu acesso restrito aos espaços de decisão. Já a demarcação de novas terras e estudos apresentados na conferência reforçaram justamente a importância dos direitos dos povos originários para a preservação da floresta e do clima. Esta edição também mostra as ruas ocupadas pela Marcha Mundial pelo Clima, a presença do agronegócio, as desigualdades no Semiárido e na Caatinga e a força de agendas historicamente marginalizadas, como gênero, ciência do Sul Global e cultura como parte da ação climática.
Ao reunir essas histórias, a Brasis reafirma que o jornalismo ambiental é uma das grandes fortalezas da newsletter e do ecossistema da Ajor. Ver a COP30 a partir dessas lentes é entender que o futuro do clima se decide tanto nos textos diplomáticos quanto nas florestas demarcadas, nas cidades amazônicas, nas comunidades rurais e nos corpos que marcham.
Boa leitura!
🔸 A COP30 terminou sem consenso sobre a principal aposta do Brasil para a conferência: o mapa do caminho para reduzir o uso de combustíveis fósseis. Também não houve decisão formal sobre um roteiro global contra o desmatamento. Principal fiadora da proposta do Brasil, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou: “Enfim, progredimos, ainda que modestamente”. Diante do impasse e da resistência de produtores de petróleo, como Arábia Saudita e Índia, o presidente da conferência, André Corrêa do Lago, anunciou que, por iniciativa própria, vai elaborar dois mapas do caminho paralelos: um para a transição longe dos fósseis e outro para frear o desmatamento. A Agência Pública faz um balanço dos avanços na conferência e destaca que a COP aprovou um pacote inédito de decisões sobre adaptação e um mecanismo de “transição justa”, que reconhece trabalhadores, povos indígenas, comunidades locais, afrodescendentes, mulheres e outros grupos vulneráveis como sujeitos centrais da mudança.
🔸 Apesar da presença recorde de cerca de 2,5 mil indígenas, só 14% conseguiram credenciamento para a Zona Azul, espaço de decisão na COP30. Sem a credencial, os indígenas não têm direito a discurso, voto ou participação em reuniões fechadas. A InfoAmazonia detalha as demandas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que cobra maior representatividade e quer incluir a demarcação de terras nas NDCs do Brasil como política climática. “Nossa mensagem central é mostrar que a demarcação e a proteção territorial são políticas de enfrentamento à emergência climática. Isso precisa não só ser reconhecido, mas posto em prática pelos grandes líderes globais, principalmente no nosso caso, o Brasil”, diz Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib.
🔸 Lá dentro, os países discutiram como unificar as três convenções criadas na Rio-92 – Clima, Biodiversidade e Combate à Desertificação – para enfrentar de forma coordenada crises que são interdependentes. “Esse alinhamento criará sinal político e de confiança para atores públicos e privados avançarem em iniciativas concretas”, avalia Hugo Mendes, parte da delegação brasileira na conferência. O Eco explica que o Brasil lidera o movimento por uma decisão que crie um grupo de trabalho permanente entre os secretariados, enquanto o bloco árabe pede cautela, temendo novas obrigações. “Se não houver acordo, fica tudo para o ano que vem e a janela para transformar sinergia em entregas concretas se estreita”, diz a gerente de política climática e mercados de carbono do Instituto LaClima, Juliana Marcussi.
🔸 Na semana final da COP, o peso das ruas entrou de vez na disputa política. Enquanto as negociações formais seguiam travadas em temas como financiamento climático e a “lacuna de ambição” das metas de corte de emissões, a Cúpula dos Povos reuniu 1.100 organizações e aprovou uma Declaração com 15 demandas, entre elas o fim dos combustíveis fósseis, a taxação de corporações e a denúncia das “falsas soluções de mercado”. A Sumaúma conta que o texto está léguas à esquerda das próprias práticas do governo Lula, uma coalizão instável que reúne conservadores, desenvolvimentistas e ambientalistas. A reportagem mostra como o Brasil, via presidência da COP, tenta canalizar essa pressão – projetando imagens da marcha na Zona Azul e prometendo registrar a Declaração dos Povos –, ao mesmo tempo em que coloca em consulta propostas como uma possível “decisão mutirão” para acelerar a transição longe dos fósseis e destravar recursos.
🔸 Fotogaleria: movimentos de 65 países percorreram o trecho entre o Mercado de São Brás e a Aldeia Cabana, organizado em blocos, no dia 15, na Marcha Mundial pelo Clima. O ato contou com cerca de 70 mil pessoas, incluindo as ministras do Meio Ambiente, Marina Silva, e dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. O Colabora reúne imagens da marcha. “Em outras realidades políticas do mundo, onde as manifestações eram feitas apenas dentro do espaço da ONU, agora, no Brasil, um país do Sul Global, de uma democracia conquistada e consolidada, sejam bem-vindos às praças”, disse Marina Silva.
🔸 Dois dias após a marcha, o governo federal oficializou a demarcação de dez terras indígenas. A medida eleva para 21 o total de territórios declarados no terceiro mandato de Lula. Segundo a Alma Preta, as portarias assinadas pelo ministro Ricardo Lewandowski incluem a demarcação do território Tupinambá de Olivença (BA) – prometida na devolução do Manto dos Tupinambá, em julho do ano passado –, além de áreas nos estados do Amazonas, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco, Paraná e São Paulo, ocupadas por povos como Mura, Tupinambá, Pataxó, Guarani-Kaiowá, Munduruku, Pankará e Guarani-Mbya. Estudos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas indicam que ampliar as demarcações pode evitar 20% do desmatamento adicional e reduzir em 26% as emissões de carbono até 2030.
🔸 “Nós fazemos parte da agricultura familiar e queremos também investimento para que os nossos agricultores possam preservar a floresta e viver, viver na floresta que é importante para o mundo inteiro”, afirma Raimundo Rodrigues Xavier, que há 30 anos participa do movimento pela agricultura familiar e defende a produção de comida mais saudável e a floresta em pé, mesmo sem incentivos e políticas públicas. Ele participou da Marcha Global pelo Clima. O Varadouro narra a resistência dos pequenos agricultores, responsáveis pelos alimentos que chegam à mesa de milhões de brasileiros, frente ao espaço e poder que o agronegócio teve institucionalmente na Conferência do Clima.
🔸 Enquanto agricultores familiares, indígenas e quilombolas protestavam, o churrasco do agro na COP teve chope gelado, pagode e defesa da pecuária como “solução para o clima”. A Repórter Brasil narra como foi o evento privado dentro da Agrizone, espaço da Embrapa na conferência. O evento restrito, com carne controlada por pulseiras e presença do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, e de figuras ligadas a conflitos fundiários, serviu de vitrine para a narrativa da “carne sustentável”. No Brasil, a expansão da agricultura e da pecuária foi responsável por 97% da perda de vegetação nativa nos últimos seis anos, segundo o Relatório Anual de Desmatamento do MapBiomas. A pecuária sozinha figura como o sétimo maior emissor de metano do mundo.
🔸 A propósito: o agronegócio articulou uma “campanha de guerra” para moldar a opinião pública no ano da conferência em Belém. Entre março e outubro passado, foram quase 20 eventos, lobby intensificado por JBS e Marfrig e alianças com mídia e redes, para ampliar a influência do setor e apresentá-lo como parte da solução para a crise climática. O Intercept Brasil teve acesso ao novo relatório “A Agenda da Carne – Excepcionalismo Agrícola e Greenwashing no Brasil”, da Fundação Changing Markets, que investiga práticas corporativas irresponsáveis. O documento aponta quatro objetivos do agro na COP30: projetar o setor como “sustentável”, sabotar ações efetivas, buscar financiamento público e influenciar o debate climático. O agro ainda pressiona por metodologias que minimizem o metano, apesar de a agricultura responder por cerca de 75% das emissões do gás no país.
🔸 “Precisamos questionar como o Semiárido vem sendo visto e vendido: um território ‘rico’ em vento, sol e agora carbono. A economia verde não pode aprofundar injustiças. A energia gerada aqui deve retornar às comunidades, às mulheres, aos jovens, não apenas ‘salvar o mundo’, mas melhorar a vida de quem vive nele. Não podemos transformar o Semiárido em uma imensa usina eólica e solar que produz energia ‘limpa’ às custas de novas desigualdades”, afirma Ivi Aliana Dantas, da Coordenação Executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo Rio Grande do Norte. Em entrevista à Eco Nordeste, ela fala sobre as tecnologias e políticas integradas ao Semiárido brasileiro, como as cisternas, e os desafios de proteção do meio ambiente e das comunidades na região. “O Semiárido brasileiro mostra ao mundo como é possível viver em equilíbrio com o bioma, suas limitações, suas forças e sua resiliência. A ASA tem repetido, nesta COP, uma frase que sintetiza esse caminho: ‘convivência é o nosso jeito de mudar o mundo’.”
🔸 “Apesar de existirem políticas e recursos destinados ao enfrentamento da crise climática, a Caatinga segue à margem”, diz Daiane Dultra, gestora social e fundadora da Painá Impacto. Em artigo na Cajueira, ela destaca o apagamento da Caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro e historicamente negligenciado, nos debates para financiar iniciativas de adaptação, mitigação e proteção. “O pouco financiamento climático que chega ao Brasil tem destino certo: grandes estruturas, projetos robustos e organizações com capacidade técnica elevada. As experiências locais, conduzidas por agricultores familiares, redes comunitárias e coletivos que já atuam com tecnologias sociais e adaptação ao clima, ficam com uma parte bem pequena (mas bem pequena mesmo!) deste recurso. Falta reconhecimento e falta estrutura para fazer com que esses recursos cheguem à ponta.”
🔸 Mulheres e meninas são cerca de 80% das pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas e desastres naturais. O debate de gênero, porém, ficou às margens da COP. A revista AzMina reconstitui a trajetória da pauta nas negociações do clima. Depois de entrar oficialmente nas conferências em 2001, em Marraquexe, o tema ficou anos marginalizado e só ganhou fôlego em 2011, com a decisão que estimulou equilíbrio de gênero nas delegações. Em 2014, surgiu o Programa de Trabalho de Lima, atualizado em 2019 com metas em capacitação, liderança, coerência de políticas, implementação sensível a gênero e monitoramento. O governo criou o Grupo de Trabalho Mulheres na COP30 e nomeou a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, Janja, como enviada especial para articular a agenda.
🔸 Falando nisso… Mulheres cientistas têm desempenhado papel central na construção do conhecimento sobre o clima. Pela primeira vez, uma conferência do clima destinou um pavilhão exclusivo para a ciência, a fim de reconhecer a importância da produção científica do Sul Global. Segundo a bióloga e pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, Joice Nunes, há avanço na presença feminina na ciência, mas os espaços de tomada de decisão são majoritariamente masculinos. “Apesar do potencial e da formação das mulheres, ainda é preciso ampliar essa presença nos espaços de decisão.” Apenas cerca de 30% dos cargos de liderança científica são ocupados por mulheres. O Amazônia Vox reúne quatro pesquisadoras que estão nesse espaço para definir caminhos para a Amazônia e para a política climática global. Elas vão além de modelos e estatísticas: a cientista indígena Sineia do Vale, por exemplo, apresentou o “Relatório de Avaliação da Amazônia”, que mostra como saberes tradicionais e conhecimentos indígenas são essenciais para compreender e proteger o território.
🔸 Pela primeira vez, a cultura foi incluída na Agenda de Ação contra as mudanças climáticas, aprovada na COP30. A partir de agora, as expressões culturais e artísticas também serão usadas como parte da mobilização de ações climáticas voluntárias. A cultura aparece em cinco das 117 soluções construídas pela sociedade civil organizada na conferência. Entre elas, estão a aceleração da integração das considerações sobre o Patrimônio Cultural nos Planos Nacionais de Adaptação e a capacitação para a adaptação de práticas culturais e sítios patrimoniais. O Nonada ressalta a importância da inclusão do setor cultural no debate climático. “O que esses eventos climáticos incidem sobre patrimônio, sobre pessoas, já é constatado como um prejuízo”, afirma a ministra da Cultura, Margareth Menezes.

