A ação do Congresso em causa própria e o dilema de um teleférico em Salvador
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🔸 A Câmara dos Deputados aprovou ontem o requerimento de urgência do PL da Anistia. O texto a ser votado ainda está indefinido, e o debate sobre seu alcance deve se intensificar: o projeto poderá tratar de uma anistia ampla, o que beneficiaria o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ou se limitar à redução de penas para os envolvidos no 8 de Janeiro. Se optar pela anistia irrestrita, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), arrisca uma nova crise com o Supremo Tribunal Federal (STF). O Metrópoles apurou que o relator do projeto de lei deve ser escolhido na próxima semana. Espera-se que Motta indique um nome do Centrão. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já avisou que vetará a proposta se ela passar. Já o Senado, sob comando de Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), deve apresentar um texto alternativo sem Bolsonaro, para evitar inconstitucionalidade.
🔸 Ainda na Câmara: os deputados incluíram na PEC da Blindagem o trecho que prevê a votação secreta para deliberações a respeito de ações penais contra parlamentares. Em mais um esforço em causa própria, os parlamentares concluíram ontem a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição. O texto restabelece a necessidade de autorização da Câmara ou do Senado para que o STF abra ações penais contra deputados e senadores, com votação secreta em até 90 dias. Agora, a proposta vai ao Senado, que já sinalizou resistência em aprová-la, informa o Nexo. Segundo Hugo Motta, a justificativa para a PEC é retomar o espírito da Constituição de 1988, marcada pela proteção aos parlamentares após a ditadura. Críticos, porém, afirmam que a nova regra pode estimular a impunidade.
🔸 Bolsonaristas citam a Lei da Anistia de 1979 para embasar o pedido de anulação das condenações de Bolsonaro e de outros envolvidos na trama golpista e nos ataques de 8 de janeiro. Criada no fim da ditadura, a lei teve como objetivo abrir caminho para a redemocratização. Com o perdão a perseguidos políticos, a lei permitiu o retorno de exilados ao país, mas também beneficiou militares responsáveis por torturas e assassinatos. Especialistas ouvidos pela Lupa explicam que a equivalência entre o PL da Anistia atual e a lei de 1979 não é adequada – a começar pelo contexto atual. Em 2023, o Brasil já vivia em plena democracia, e os envolvidos nos atos golpistas agiram contra a Constituição e o Estado de Direito. Segundo o professor Carlos Gonçalves Junior, a anistia contra esse tipo de crime é “absolutamente inconstitucional”. “Em vez de reforçar a democracia, colocaria em risco a sua continuidade, esvaziando a força normativa da Constituição de 1988”, completa o professor da PUC-SP.
🔸 “A condenação de Jair Bolsonaro projeta o Brasil como um exemplo de resiliência democrática em um mundo marcado pela ascensão do populismo autoritário”, escreve Alexandre Ramos Coelho, coordenador da pós-graduação em Política e Relações Internacionais, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Em artigo no Conversation Brasil, ele analisa as implicações internacionais da condenação de Bolsonaro pelo STF por tentativa de golpe. O julgamento reforça o papel da democracia constitucional, que impõe limites até mesmo a líderes eleitos, evitando a corrosão “por dentro” das instituições – fenômeno que se vê em países como Hungria, El Salvador e México. A condenação, porém, não elimina o risco. O professor lembra que “o populismo autoritário costuma oferecer respostas simples para problemas complexos” e tende a transformar decisões judiciais em narrativa de perseguição.
🔸 No Rio de Janeiro, o Complexo do Chapadão vive sob fogo cruzado há pelo menos dois meses. Moradores da comunidade, na zona norte da capital, relatam viver sob medo constante, que se agravou nas últimas semanas com tiroteios diários. As operações da Polícia Militar, com grandes contingentes, têm resultado em confrontos frequentes. O Voz das Comunidades ouviu moradores (em condição de anonimato) sobre a situação. “Eu moro aqui há 22 anos e cada ano que passa a situação fica mais horrorosa. Ainda mais quando você tem duas crianças pequenas. Dentro de casa a gente se sente inseguro. Às vezes você está dormindo, acordando… e quando se depara, tem policial dentro da sua casa, sem mandado”, afirma uma moradora. Um jovem diz que perdeu o direito de ir e vir: “Por conta dos tiroteios, os ônibus são desviados ou não passam. Isso fica muito difícil. Além disso, por ser um jovem da periferia, o olhar dos agentes policiais é preconceituoso. Eles nos julgam pelo nosso modo de vestir e de nos expressarmos. Com isso, acabamos sendo o primeiro alvo dessas operações policiais”.
📮 Outras histórias
Jessé tem 33 anos e é entregador por aplicativo em Curitiba. Com uma câmera presa ao corpo, ele registra seus trajetos de bicicleta pela capital paranaense. Já são dez anos de labuta e histórias. O Plural resgata a história do entregador e acompanha sua rotina como parte do projeto “Periferias Plurais”, que convida jovens de Curitiba e região a falar sobre suas vidas e comunidades. Jessé pedala em média 50 km por dia na tentativa de garantir pelo menos R$ 100 por jornada. Mas o valor que recebe das plataformas é baixo – a taxa média é de R$ 7 por entrega. “Uma taxa justa seria de no mínimo R$ 15. É a minha vida que está em jogo, são muitos riscos…”, afirma. Ele embala os percursos nas ruas da cidade com uma playlist reproduzida numa caixa de som portátil. A música o deixa animado (“Parece que não preciso nem de café para ficar acelerado”) e também funciona como uma sirene, alertando motoristas sobre sua presença no trânsito.
📌 Investigação
Respostas a pedidos de acesso à informação feitos a 16 estados do Norte e do Nordeste revelam as deficiências estaduais na transparência pública sobre dados de infrações ambientais. Levantamento da Fiquem Sabendo, a partir do projeto “Fiscais do Clima”, mostra que diversos estados não disponibilizam dados públicos de forma estruturada e sistemática, apesar dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil sobre o monitoramento constante e prestação de contas sobre as ações de proteção ambiental. Os órgãos estaduais não documentam e, na maioria dos casos, não monitoram processos de consulta em licenciamentos ambientais. Também não possuem informações sobre projetos privados de créditos de carbono.
🍂 Meio ambiente
Em Salvador (BA), moradores do Subúrbio Ferroviário, área periférica da cidade, precisam escolher entre mobilidade urbana e preservação ambiental, cultural e religiosa. Esse é o dilema imposto pelo projeto para a construção do Teleférico Mané Dendê. No centro da discussão está o Parque São Bartolomeu, localizado no bairro de Campinas de Pirajá, onde as estruturas de sustentação do empreendimento serão instaladas. A Revista Afirmativa conta que o lugar, no entanto, é uma Área de Proteção Ambiental (APA) e é sagrado entre as religiões de matriz africana, considerado como território de fé e memória. Entre os possíveis danos do projeto listados pelo movimento ambiental estão a poluição da nascente da Cachoeira de Oxumarê e risco de desmatamento.
📙 Cultura
“Vamos reduzir a desigualdade quando todos entenderem que desigualdade não é um problema do Estado. Que todos estamos envoltos nela. A desigualdade social brasileira é resultado de um modelo de pensamento, um modelo que acredita que, para viver em sociedade, a gente precisa mais de distância do que de ponte”, afirma o antropólogo e escritor Michel Alcoforado, autor de “Coisa de Rico”. A obra, que está há semanas entre os livros mais vendidos do país, mergulha nas contradições da elite brasileira e como ela constrói códigos invisíveis para reforçar privilégios e naturalizar desigualdades. Em entrevista à Fast Company Brasil, Alcoforado fala sobre como se sustentam as grandes fortunas no país, a dificuldade de discutir taxação dos super ricos e o papel das redes sociais na ostentação. “No Brasil, não temos um símbolo claro de percepção de quem é rico ou não, ficam todos batalhando pelo reconhecimento que o outro tem da nossa riqueza. E isso é uma construção simbólica.”
🎧 Podcast
A gastronomia periférica vai além da cozinha e une identidade, resistência e transformação social. A série “Criativos da Quebrada”, produção do Manda Notícias, recebe três empreendedores sociais para conectar histórias que revelam como o quintal, a feira e a cozinha são espaços de luta, inovação e futuro nas periferias. No Jardim Monte Azul, zona sul de São Paulo, Maria Clara atua no coletivo Horta do Monte, que usa a agroecologia para garantir a alimentação saudável e a autonomia comunitária dos moradores. Já o criador da iniciativa Gastronomia Periférica, Edson Leite, traz a experiência de transformar vidas por meio da cozinha, com impacto social, cultura e educação. Fundador da The Flavors Burger e do festival Sabor da Quebrada, Jesus Barbosa enxerga a gastronomia como ferramenta de protagonismo e inspiração nos territórios.
🙋🏾♀️ Raça e gênero
Quase metade das mulheres brasileiras (48%) já sofreram violência doméstica, incluindo as que não reconheciam a situação como agressão. Em 2023, 61% das vítimas não registraram ocorrência na polícia, segundo os dados do Mapa Nacional da Violência de Gênero, lançado no mês passado pela parceria entre o Senado, o Instituto Natura e a Gênero e Número. O Nós, Mulheres da Periferia reúne as principais informações do levantamento. A subnotificação policial de 2023 variou de acordo com as regiões: no Centro-Oeste, 65% das mulheres não denunciaram os episódios de violência doméstica, seguido por 63% no Sudeste, 62% no Nordeste, 58% no Sul e 57% no Norte.